História da Casa do Alaká
A Casa do Alaká é uma oficina de tecelagem localizada dentro do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, na Bahia. A Casa foi fundada em 2002, mas o fio de sua história começou a ser tramado em 1986. A fiação, contudo, iniciou-se há muitos anos em outro continente.
O alaká ou pano da costa tem origem africana e compõe o traje da baiana e a indumentária sagrada do candomblé. De uso exclusivamente feminino, é um pano retangular utilizado de diversas formas, podendo ser amarrado na cintura ou no peito, ou envolvendo os ombros com uma das pontas sobre o peito e a outra nas costas. É produzido em várias cores, liso, com estampas geométricas ou listras, sempre associado a um orixá ou a uma nação de origem. Trazido ao Brasil pelas mulheres escravizadas, possui vários significados sociais e simbólicos dependendo do contexto de uso. Na vida cotidiana, é um distintivo de posição social, podendo ser utilizado também para carregar bebês. Em contexto ritual, no candomblé, é indicativo de hierarquia, pois é utilizado somente pelas ebomis, aquelas que já cumpriram sete anos de obrigação após a iniciação.
Durante os séculos XIX e XX, havia no Brasil a produção de panos da costa seguindo a mesma técnica africana, em tear horizontal de pedal. Como essa produção não conseguia suprir a demanda local, havia uma intensa importação de panos da costa para o Brasil. Esses tecidos eram fabricados em países da costa ocidental do continente africano, e talvez seja daí que venha seu nome. Ao longo do século XX, os panos da costa dos teares tradicionais foram paulatinamente substituídos por tecidos industrializados. Com menos artesãos dominando essa técnica no Brasil e cada vez mais dependendo da importação, os panos tradicionais foram ficando cada vez mais caros. Aos poucos, seu uso ficou praticamente restrito às mulheres com maior poder aquisitivo.
Atenta a esse contexto e sensibilizada por uma viagem que fez à África, Mãe Stella de Oxóssi, então Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, idealizou um curso de tecelagem tradicional para os filhos do terreiro. Seu objetivo era inserir a produção dos panos da costa na casa, para que mais filhas pudessem adquiri-los e usá-los, independentemente de suas condições financeiras. Além disso, também queria valorizar a tecelagem que já existia no Brasil e estava em vias de desaparecer. Assim, em 1986, o mestre tecelão baiano Abdias do Sacramento Nobre ministrou um curso para 18 pessoas vinculadas ao terreiro, que foi todo registrado em áudio e fotografias. Contudo, infelizmente, não foi suficiente para instituir a prática no terreiro.
Em 2002, Mãe Stella fez um novo esforço e articulou um projeto para uma nova oficina no terreiro, envolvendo o Instituto Mauá, o Museu do Folclore Edson Carneiro (RJ) e a BR Distribuidora. Dessa vez, a oficina foi pensada especificamente para ensinar os jovens, além de prever a aquisição de teares. Como desdobramento do projeto, no mesmo ano, duas casas de tecelagem foram criadas em terreiros: a Casa do Alaká, no Ilê Axé Opô Afonjá, e a Associação São Jorge Filho da Goméia, no Terreiro São Jorge Filho da Goméia, localizado em Lauro de Freitas, Bahia. Nesse contexto, a Casa do Alaká foi idealizada com uma nobre missão: perpetuar uma tradição que é um símbolo de resistência e atravessa culturas, continentes, séculos e gerações.
“Comecei como aluna. Hoje, graças a Deus, sou uma das multiplicadoras, assim como Dona Norma, e consegui, através de perseverança, muito amor e dedicação, manter a casa durante esses 22 anos. Manter por quê? Porque nem sempre tivemos recursos; muitas vezes, o material saía do meu bolso, do pano que eu vendia, para que as pessoas do Axé pudessem usar. Muitas vezes, vendíamos o pano por um valor muito abaixo do justo. Não é querer ser hipócrita; claro que o dinheiro é importante, mas, naquele momento, muito mais importante do que o dinheiro era a alegria de ver as pessoas usando o tecido, o orixá usando o tecido. […] A missão de dar continuidade a uma tradição, a uma identidade, porque é uma das coisas que sempre deixamos demarcada quando as pessoas perguntam: o pano da costa hoje é uma identidade de matriz africana dentro do espaço religioso, porque as outras coisas que fazem parte do adorno das mulheres dentro do ritual são portuguesas. E o que é que nós temos de africano? É o pano da costa. Ele conta a história desse povo que foi retirado de sua terra e mostra o porquê de sua importância ao ser usado para completar a obrigação de sete anos. Então, precisamos dar continuidade a essa produção do pano.” – Iraildes Maria Santos, coordenadora da Casa do Alaká.
Obra e processo criativo
Apesar de a tecelagem permitir a criação de vários tipos de peças, os teares da Casa do Alaká produzem apenas três, utilizadas nos trajes rituais do candomblé:
- Pano da costa ou alaká: pano com tamanho padrão de 80 por 200 centímetros, podendo apresentar outras variações para mais ou para menos, dependendo do orixá, que pode demandar mais ou menos amarrações. Em geral, duas faixas de tecido de 40 centímetros de largura são tecidas e costuradas para se chegar às dimensões finais.
- Ojá ou torço: pano com 20 ou 35 por 220 centímetros, utilizado enrolado na cabeça como um turbante pelas mulheres.
- Filá: espécie de chapéu que compõe o traje masculino.
As peças são tecidas manualmente em teares de pedal horizontais de tipo africano, utilizando linhas muito finas de algodão para que possuam um caimento bonito. A linha do urdume costuma ser a de costura reta, enquanto a trama é tecida com um fio mais grosso. Em alguns casos, utilizam linhas sintéticas para dar brilho, como o dourado, atendendo ao gosto de alguns orixás. As cores escolhidas dependem do orixá a que se destinam e seguem as convenções da nação da casa, que é do candomblé Ketu.
O processo de tecelagem é elaborado e tem várias etapas:
“Para fazer um ojá ou um alaká, você não encontra um tear pronto para você sentar e tecer. Tem várias etapas. Nós temos que fazer o urdimento, temos que trabalhar a separação do fio, temos que colar essa linha que sai da urdideira para o tear. Depois do tear, a gente passa para os liços; dos liços, a gente vai para o pente; do pente, a gente amarra novamente. Então são etapas até chegar ao tecer. Nesse processo da urdideira até eu sentar e tecer, eu vou levar em média de 12 a 15 horas, mais ou menos. Pronto, aí eu vou para os liços e preciso decidir que ponto vou usar. Vou usar um ponto decorativo? Vou fazer um ponto tela? Se eu for trabalhar com um ponto decorativo, eu vou demorar um pouco mais para colocar essas linhas no liço. E daí eu vou colocar as linhas do liço para o pente, do pente para a amarração, encher a navete para iniciar a tecer. Se eu for fazer um pano da costa, eu vou levar umas 12 horas tecendo, pegando sem parar.” – Norma Alves de Oliveira
A Casa não tem o objetivo comercial de gerar renda, pois seu papel é preservar a tecelagem tradicional de uso religioso. Por isso, restringe a sua produção às três peças citadas acima e possui uma política de preços que, de acordo com metodologias de precificação, seria entendida como inadequada. Dentro desses princípios, os preços pelos quais os panos são vendidos não dariam conta de cobrir os custos de produção, a manutenção da Casa e a remuneração do trabalho da tecelã. Contudo, a escolha de praticar preços mais baixos tem um objetivo político essencial: mantê-los acessíveis para que os filhos da casa possam usá-los e portá-los em seus ritos, honrando seus orixás e sua tradição.
As vendas, contudo, não se restringem apenas aos membros do terreiro. Turistas, pesquisadores, estudiosos, jornalistas e outros visitantes podem adquirir as peças, que, fora do contexto religioso, passam a ter novos usos. Um ojá, por exemplo, é frequentemente comprado como uma echarpe. Essa abertura da venda para pessoas que não necessariamente têm uma relação com o candomblé é justificada pela intenção de propagar esse modo de fazer, que é entendido pelas artesãs como uma herança cultural do nosso país e que pertence a todos os brasileiros.
Essa abertura também acontece de outra maneira. Atualmente, três artesãs se dedicam à tecelagem na Casa. Uma das mais dedicadas, Norma, não é candomblecista, o que não a impede de falar com propriedade e admiração sobre a técnica da tecelagem. Além das tecelãs, no momento, a Casa acolhe duas alunas que são filhas do terreiro, pois todos os seus membros podem aprender a tecer quando quiserem, de forma gratuita.
Ao longo de sua história, a Casa do Alaká já formou muitos tecelões. Ela também tem o compromisso de ensinar a tecelagem para aqueles que vêm de fora e têm interesse em aprender, independentemente da religião. Essas oficinas são sempre viabilizadas por meio de projetos, pois nada é cobrado dos alunos.
Centro de saber, cultura, ensino e aprendizagem, a Casa do Alaká mantém viva a tessitura de sua história, assim como a dos povos afro-brasileiros.
Referências
Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC. Pano da Costa. Salvador: IPAC e Fundação Pedro Calmon, 2009.
As citações de Iraildes Maria Santos e Norma Alves de Oliveira foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 26 de abril de 2024.