Família Mestre Jotacê – BA

“Para falar a verdade, eu já gostava de mexer com o artesanato. Quando eu era criança, eu ia modelando e fazia umas besteirinhas. E aí fui aprimorando, aprimorando, tomei curso com várias pessoas. E fui aprendendo, fui aprendendo até fazer por mim mesmo.” — Jotacê.

 

História da família

Jiovaldo Chaves Araújo (1934), mais conhecido como Mestre Jotacê, nasceu em Senhor do Bonfim – BA. O primeiro contato com o barro aconteceu ainda na infância, pois gostava de observar suas vizinhas que criavam presépios e outras figuras. A argila era um de seus brinquedos favoritos e o principal meio para dar asas à imaginação.

Na juventude, passou uma temporada morando em São Paulo, trabalhando em diversas atividades. De volta à Bahia, morou em Salvador. Foi na capital baiana onde começou a se dedicar ao estudo da arte. Começou a frequentar o espaço de cursos livres da Escola de Belas Artes, de maneira informal, com a intenção de aprender desenho e outras técnicas, como a pintura e o entalhe em madeira. Lá conheceu grandes artistas, como Carybé e Emanoel Araújo, com quem trabalhou entalhando peças em madeira. Teve contato mais próximo com a cerâmica, azulejaria e mosaico, trabalhando com Udo Knoff. Em Salvador, produziu cerca de 12 grandes painéis de madeira para edifícios da cidade. Três deles estão no Centro Integrado Orixás Center. Entalhados em cedro, com 200 x 100 cm, representam os orixás Logum Edé, Oya Ijebé (Iansã) e Inlé (Erinlé).

Sempre curioso pelos mistérios desse e de outros mundos, Jotacê tem grande interesse por ufologia. Junto com um grupo de amigos, planejaram comprar um terreno em local alto em Mata de Sâo João para observar melhor o céu. No fim, somente Jotacê e sua família se mudaram para esse local isolado, onde permaneceram por cerca de dois anos sem acesso à energia elétrica, até mudarem-se para Lençóis em 1985, na Chapada Diamantina.

Ali, Jotacê criou seus quatro filhos e a cerâmica voltou para sua vida, tornando-se a principal mídia para sua expressão artística. A escolha por essa técnica é explicada pela dificuldade de se encontrar madeira de boa qualidade para o entalhe, como o cedro, e, por outro lado, a facilidade para a obtenção do barro.

Jotacê repassou seus ensinamentos para os quatro filhos e netos. Atualmente, dois seguem tendo a produção artística como profissão: Hermes Aquino Chaves de Araújo (1973) e Janshid Aquino Chaves de Araújo (1974). Cresceram vendo o pai trabalhar, ajudando a pintar algumas peças. Também aprenderam a desenhar:

“Hoje ele [Jotacê] desenha muito pouco. Antes, quando ele não estava trabalhando, estava desenhando. E a gente foi pegando essa coisa do desenho. No meu caso, eu aprendi primeiro a desenhar. Eu gostava muito de desenhos de heróis e carros e ficava desenhando. E aí pedia a meu pai para fazer um desenho e a gente ia copiando. Quando eu tinha uns oito anos, ele começou a comprar revistas em quadrinhos pra gente, logo depois que a gente começou a ler. Ele também gostava e a gente lia e ia copiando os desenhos.” — Hermes Araújo

Hermes vendeu sua primeira peça aos 13 anos. Além de trabalhar com a cerâmica, já produziu um storyboard para filmes, ilustrou capas de livros, fez teatro e tocou em bandas de rock. Considera que sua profissão é artista, mas precisa se dedicar a outras atividades para complementar a renda: já deu aulas de inglês e, atualmente, atua como professor de educação física.

Jan, por sua vez, também aprendeu a modelar o barro muito jovem, mas passou um tempo afastado, trabalhando em lojas de artigos esportivos. Também morou um tempo em Feira de Santana – BA, onde atuou no mercado imobiliário. Em Feira de Santana, sentiu a necessidade de voltar a trabalhar com o que amava, a cerâmica, e retomou sua produção. Em 2013, foi convidado para criar a imagem do fictício Santo Dias, padroeiro de Bole-bole na novela Saramandaia, produzida pela Rede Globo. Passou algum tempo em Imbassaí, distrito do município de Mata de São João – BA, mas voltou para Lençóis em 2020 para ficar mais perto do pai. Possui um ateliê e uma loja na cidade para comercializar suas peças.

Obra e processo criativo

Por seguirem os passos do pai, no início, Hermes e Jan faziam as peças muito parecidas com as de Mestre Jotacê. As peças eram tão parecidas que até hoje eles têm dificuldade de identificar a autoria das mais antigas. Com o tempo, passaram a desenvolver um estilo com traços próprios e cada um mantém sua produção de forma autônoma, sem deixar de seguir o estilo criado pelo pai.

Por conta da idade avançada de Jotacê, Hermes trabalha mais próximo a ele, adiantando parte do trabalho de modelagem, principalmente na confecção do tubo (corpo) da escultura, para que o mestre possa se concentrar na ornamentação.

Os três modelam na cerâmica esculturas variadas, com temas sempre relacionados à natureza, a maior fonte de inspiração. Estudantes da Cultura Racional, entendem que são veículos para a manifestação do natural, que se expressa em suas criações.

Jotacê ficou conhecido pelas apelidadas “Madonas”, figuras femininas representadas com gestos carregados de simbolismo místico ou religioso, como as mãos postas ao peito em oração ou mãos ao lado do corpo em gesto de graça. Geralmente, não trazem indicativos iconográficos que permitam caracterizá-las como santas específicas, mas trazem as vestes ricamente decoradas com padrões e elementos naturais, como flores, peixes e pássaros, com rica textura produzida por incisões e cores. De fato, os padrões do ornamento remetem à azulejaria ou mosaico, perfeitamente encaixados, muitas vezes com padrões que se repetem e complementam.

Criam outras figuras humanas, como imagens de santos, anjos, orixás, sereias e indígenas, todos igualmente decorados. Possuem em comum as formas delicadas e arredondadas, em posição hierática, mas serena. As feições são calmas e até introspectivas, como se elas mesmas manifestassem um mundo interior de mistério.

Araras, tucanos, papagaios e outros passarinhos, reais ou imaginários, são modelados no barro e belamente ornamentados. Diferentemente do que geralmente acontece com outros artistas e artesãos populares, o desenho ocupa papel importante no processo criativo da família e ganha especial protagonismo nas esculturas de formato geométrico, como cubos e esferas. Com formas abstratas, essas peças destacam o trabalho preciso da ornamentação, baseado no desenho.

Além das esculturas, criam grandes painéis com duas técnicas distintas. A primeira, semelhante a um mosaico, consiste em modelar individualmente dezenas — até centenas — de pequenas peças que se encaixam perfeitamente. Depois da pintura e da queima, as peças são remontadas e coladas em uma chapa de compensado, formando uma imagem extremamente detalhada e intrincada, cheia de texturas.

A segunda técnica, criada por Jotacê, é mais próxima da pintura. Consiste em criar uma massa cerâmica a partir da mistura de pó de tijolo moído com cola e pigmentos minerais. Essa massa é aplicada em uma base de compensado com uma espátula, que faz as vezes de pincel. O resultado é uma obra com grande efeito plástico.

Antigamente, costumavam coletar o barro em Lençóis e processá-lo manualmente. Hoje, compram o barro pronto de um fornecedor de Salvador. As peças são queimadas em forno elétrico e pintadas com pigmentos minerais industrializados, conhecidos como engobes.

Referências

DO ALTO DA ESTRELA: Madonas de Cerâmicas de Lençóis. Série Artesãos da Cultura Baiana. Direção: Fabíola Aquino. 2013. 1 DVD.

MARTINS, Flávia; LUZ, Rogério; BRANDÃO, Celso. Santeiros da Bahia: arte popular e devoção. Recife: Caleidoscópio, 2010.

SILVA, Anderson Marinho da. Jotacê e o Centro Integrado Orixás Center: afrobrasilidade em destaque na década de 1970. Artelogie [Online], 19, 2023. Consultado em 16 de junho de 2024. URL: http://journals.openedition.org/artelogie/11585; DOI: https://doi.org/10.4000/artelogie.11585

As citações foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 24 de abril de 2024.

 

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