História da família
José Antônio da Silva (1921–1973), mais conhecido como Zé Caboclo, nasceu em Sítio Ribeira dos Campos, em Caruaru. Por volta dos 7 anos de idade, mudou-se com sua família para o Alto do Moura. Filho de José Joaquim da Silva e da louceira Josefa Maria da Conceição, cresceu vendo a mãe modelar panelas, alguidares e outras louças utilitárias. Como tantas crianças que crescem em comunidades com tradição oleira, desde cedo modelava figurinhas no barro para brincar.
Em 1947, casou-se com Celetista Rodrigues de Oliveira, com quem teve 11 filhos; destes, 3 faleceram em tenra idade. Passou parte da vida trabalhando como agricultor, até a chegada de Mestre Vitalino ao Alto do Moura, no final da década de 1940, vindo da mesma localidade em que Zé Caboclo nascera. Contam que Mestre Vitalino tinha Zé Caboclo em alta estima, considerando-o como seu primo.
Zé Caboclo era inseparável de seu cunhado Manuel Eudócio e, juntos, foram os primeiros aprendizes de Mestre Vitalino na cerâmica figurativa, inserindo inovações à técnica original do mestre, como a utilização de arames na estrutura das figuras e a pintura dos olhos com tinta branca e bolinha preta no lugar dos pequenos orifícios que Vitalino fazia. Desse diálogo e colaboração entre os três, e com outros artesãos que também foram discípulos do mestre, como Zé Rodrigues, Ernestina e Manuel Antônio, surgiu a tradição figurativa em cerâmica do Alto do Moura, mudando completamente a história da vida de seus moradores.
Zé Caboclo repassou seus conhecimentos para os oito filhos, formando uma oficina familiar de modelagem de figuras. Contudo, o aprendizado da cerâmica tinha uma forte relação com o gênero. As filhas aprendiam a modelar o barro primeiro, aos 6 ou 7 anos de idade, pois ficavam em casa ajudando a mãe nos afazeres domésticos. Como conta Socorro Rodrigues:
“Com seis anos eu já estava pegando no barro para fazer meus próprios brinquedos. E logo, uns dois anos depois, eu estava fazendo brinquedinhos, os boizinhos, cavalinhos, tudo quanto é brinquedo de barro, mas já era para vender, para comprar nossos brinquedos, nossos doces quando saímos em dia de domingo, as guloseimas nossas. Por conta que ficava difícil, né? Ele e minha mãe trabalhando… eram oito filhos. Por ser criança, eu fazia as miniaturas, mas depois eu gostei e fui me aperfeiçoando nas miniaturas e até hoje faço.” – Socorro Rodrigues.
Já os filhos homens trabalhavam na roça para compor a renda familiar e cultivar o roçado de subsistência, como milho, batata-doce e macaxeira. Por isso, aprendiam a modelar mais tarde, por volta dos 15 anos, mas não deixavam de ajudar na oficina, buscando lenha para a queima e na pintura das peças. Antônio Rodrigues, por exemplo, lembra que aprendeu a modelar com a irmã Marliete Rodrigues, que, apesar de mais nova, já modelava há mais tempo. A esposa de Zé Caboclo, Celestina, também trabalhava na cerâmica, mas criava miniaturas de panelinhas e louças utilitárias, ofício ao qual se dedicou até seu falecimento.
Atualmente, dos oito filhos, seis dedicam-se à arte figurativa como principal atividade econômica: Paulo Rodrigues da Silva (1950), Antônio Rodrigues da Silva (1951), Maria do Socorro Rodrigues da Silva (1955), Carmélia Rodrigues da Silva (1956), Marliete Rodrigues da Silva (1957) e Horácio Rodrigues da Silva (1965). Além dos filhos, vários netos de Zé Caboclo aprenderam a modelar o barro seguindo os passos da família, mas é Amanda Paes Rodrigues Pereira (1982), filha de Antônio, quem mais tem se destacado.
Zé Caboclo faleceu jovem, aos 53 anos, vítima de esquistossomose, deixando muita saudade:
“E a união, o cuidado que meu pai tinha com a família. Tudo que ele fazia era para a família, né? Para ajudar a família. Era uma pessoa dedicada. Ele gostava muito de fazer trabalho social aqui na comunidade. Ele era católico, participava das festas de igreja, participava da associação. Ele foi sócio de um clube de futebol, que tinha aqui, o Esporte do Alto do Moura. Era uma pessoa atuante, né? Era muito querido aqui por todo mundo.” – Antônio Rodrigues.
Com o falecimento do pai, a família se preocupou em manter a banca na Feira de Caruaru, local onde começou a vender suas peças ao lado da banca de Mestre Vitalino. Mas, aos poucos, a feira deixou de ser um ponto rentável de venda e hoje não é mais frequentada pelos artesãos do Alto do Moura. Com a transformação do Alto do Moura em um polo de arte popular figurativa, os artesãos vendem suas peças em lojinhas-oficinas no próprio bairro, que recebe milhares de turistas e compradores todos os anos. A família Zé Caboclo possui um desses pontos de venda na Rua Mestre Vitalino, com um espaço que funciona como oficina para os irmãos homens. As mulheres preferem modelar em casa e têm outros pontos de venda. Socorro, por exemplo, possui na mesma rua uma loja chamada Ateliê Dona Celestina.
Foram as mulheres da família – Carmélia, Marliete e Socorro – que criaram, junto a outras artesãs, a primeira associação de artesãs mulheres do Alto do Moura. A ideia para fundar o grupo Flor do Barro surgiu em uma caminhada em 2014, enquanto elas conversavam sobre a invisibilidade das mulheres artesãs da cerâmica, geralmente relegadas a ficarem escondidas na cozinha, onde geralmente costumam trabalhar, e suas artes serem consideradas menores. Hoje, cerca de 20 artesãs fazem parte do grupo, que oferece oficinas, busca apoio para projetos e tem a função de fortalecer o trabalho feminino por meio da união afetiva.
Para além do talento e dos conhecimentos que possuem, talvez essa organização e dedicação feminina explique, pelo menos em parte, por que são as mulheres da família as que mais possuem reconhecimento oficial: Marliete Rodrigues recebeu o título de Patrimônio Vivo do estado de Pernambuco em 2021 e Socorro Rodrigues recebeu o título de Notório Saber da Universidade de Pernambuco em 2024.
Obra e processo criativo
Os artesãos da família seguem o trabalho do pai, reproduzindo suas peças e reapropriando-se de temáticas a partir de uma linguagem artística individual. De maneira geral, modelam cenas do cotidiano e da cultura nordestina, como bandas de música, famílias de retirantes, brincadeiras infantis, carros de boi, folguedos e festas populares, profissionais, entre tantas outras. Dos seis filhos, Antônio, Marliete e Socorro possuem os trabalhos mais inovadores, expressando uma reapropriação temática permeada por suas experiências e subjetividades.
Antônio é quem possui o trabalho mais próximo ao do pai. Foi ele quem retomou o tema “A Escola dos Bichos”, relembrando uma peça que Zé Caboclo fez por encomenda a partir de uma imagem enviada por um cliente. Se na peça original os bichos sentam um ao lado do outro em uma grande mesa, à maneira da Santa Ceia, na releitura de Antônio, os animais sentam à mesa redonda. Desdobrando a temática, criou a peça “A Farra dos Bichos”, que retrata animais sentados ao lado de dentro de uma mesa circular se acabando de comer frutas que caem de uma grande árvore localizada ao centro. Antônio também se dedica a modelar os personagens dos reisados e outros folguedos, como o boi-bandeira e o cavalo-marinho, continuando uma inovação de Zé Caboclo, que também era brincante. Em relação ao Maracatu, por exemplo, Zé Caboclo representava a Nação Elefante de Dona Santa, enquanto Antônio prefere modelar a Nação Pernambuco, mais recente.
A produção de miniaturas na família teve início com Socorro. Quando criança, produzia peças pequenas porque eram mais fáceis, mas logo pegou o gosto e assumiu como seu traço individual. É conhecida como a mais perfeccionista da família, produzindo poucas peças por mês, pois se dedica a cada uma com muito esmero. Tem como temática favorita representar o universo lúdico das antigas brincadeiras infantis, como peão, pipa, amarelinha, em um esforço para preservar a memória de algo que diz estar desaparecendo. Também inventou cenas profissionais, como o pipoqueiro.
Marliete começou seu trabalho fazendo peças maiores e é considerada a artista mais ágil da família, sempre com produções muito volumosas. Logo se interessou pelas miniaturas por influência da irmã, revelando grande habilidade para as peças de pequenas dimensões. Ficou conhecida por suas cenas do cotidiano familiar, criadas a partir das lembranças de sua avó. Nelas, a avó alimenta as galinhas, conta histórias para os netos em uma sala ou assistem juntos à televisão.
Curiosamente, foram Socorro e Marliete que criaram, em parceria, os jogos de xadrez com personagens nordestinos a partir do resgate de uma peça que Zé Caboclo criou a pedido de um cliente. Modelaram variações do jogo, com peças representando Padre Cícero, Lampião, Maria Bonita e os cangaceiros, cactos, bois e personagens do reisado e do cavalo-marinho. O jogo se tornou um sucesso e passou a ser reproduzido por outros membros da família e artesãos do Alto do Moura.
A argila é comprada da Associação dos Artesãos e Artesãs em Barro e Moradores do Alto do Moura e é retirada das margens do rio Ipojuca, que passa próximo ao bairro. Vem de um barreiro cujo terreno foi comprado pela prefeitura de Caruaru com o objetivo de garantir a matéria-prima para a produção dos artesãos. Como esse barro precisa ser processado em casa, algumas vezes as artesãs da família que trabalham com miniaturas preferem comprar o barro já preparado, pulando uma etapa de trabalho.
Depois de modeladas, as peças só são queimadas em fornos a lenha depois de estarem completamente secas. A família detém, há muitos anos, o conhecimento preciso para produzir as peças com o mínimo de perda possível. Depois de queimadas, são pintadas com esmalte sintético, etapa muito trabalhosa devido à diversidade de cores e riquezas de detalhes.
Referências
COIMBRA, Silvia; MARTINS, Flávia; DUARTE, Letícia. O reinado da Lua: escultores populares do Nordeste. Rio de Janeiro: Salamandra, 1980.
FROTA, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro: século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005.
PONTES, Edna Matosinho de. Eu me ensinei: narrativas da criatividade popular brasileira. São Paulo: Via Impressa Edições de Arte, 2017.
WALDECK, Guacira. Zé Caboclo. Catálogo de exposição. Sala do Artista Popular, nº 143. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2008.
As citações de Socorro Rodrigues e Antônio Rodrigues foram retiradas de entrevistas realizadas nos dias 7 e 14 de maio de 2024, respectivamente, por Isabel Franke.