Família Pereira – MG

“Eu aprendi vendo ele fazer, sabe? Eu também acho que isso é um dom que já vem de família. Porque a família toda faz, eu sigo fazendo até hoje.” — Margarida Pereira Silva 

 

História da família 

Ulisses Pereira Chaves (1924–2006) nasceu e viveu no povoado de Córrego de Santo Antônio, no município de Caraí – MG. Filho da paneleira Domingas Pereira dos Santos e neto e bisneto de oleiras, foi o primeiro homem a produzir cerâmica figurativa em sua região, um ofício até então exclusivamente feminino. É a partir de sua geração que outros homens também começam a se dedicar a essa atividade. 

É considerado um dos maiores artistas populares do Brasil e um dos mais importantes ceramistas do Vale do Jequitinhonha. Não gostava de ser fotografado nem de que gravassem suas falas, pois entendia que esses aparelhos enfraqueciam as pessoas. Também dava poucas entrevistas, mas causava grande impressão com suas formulações filosóficas e metafóricas sobre seu processo criativo. Tinha fama de ser uma pessoa excêntrica e difícil. Dos poucos textos produzidos sobre sua obra por quem o conheceu pessoalmente, é evidente o impacto enigmático que ele produzia em quem parasse para ouvi-lo. 

Vivia praticamente sem sair de seu sítio, trabalhando na roça e se dedicando à sua arte. Foi casado com Maria José, que também era ceramista. Teve 10 filhos, para os quais repassou seus conhecimentos, formando uma pequena escola em torno de seu trabalho. Atualmente, dois deles e uma neta continuam seu legado de forma expressiva: os filhos Margarida Pereira da Silva (1966) e José Maria Alves da Silva (1972), e a neta Rosana Pereira da Silva (1988), filha de Margarida. 

Margarida e Rosana dedicam-se ao artesanato como fonte exclusiva de renda. Rosana é tímida e fala pouco, já Margarida é mais conversadeira e gosta de contar sobre sua produção. José Maria, além de modelar as peças, também presta serviços na área da construção civil como pedreiro. 

Ulisses faleceu em dezembro de 2006. Suas obras são salvaguardadas em coleções particulares e em museus, em especial no pavilhão dedicado a ele no Sítio Roberto Burle Marx (RJ), formado a partir da coleção do arquiteto, no Museu do Pontal (RJ) e no Museu de Folclore Edison Carneiro. Mas seu legado permanece vivo e reinventado pelas mãos de seus descendentes e aprendizes: 

“Eu tenho muito orgulho do meu trabalho, sabe? Adoro modelar, minha terapia é o artesanato. Sem ele, acho que eu andava estressada direto. Quando eu tô modelando as minhas peças é a maior felicidade que eu tenho. Principalmente quando eu lembro que é uma herança que o pai deixou pra gente, né? Um legado que a gente não pode nunca deixar acabar.” — Margarida Pereira Silva. 

Obra e processo criativo 

Ulisses Pereira Chaves criou um estilo figurativo singular e inconfundível, diferenciando-se de outras estéticas da cerâmica, utilitária e figurativa, produzidas em diferentes regiões do Vale do Jequitinhonha. Suas peças chamam a atenção pela inesperada combinação de formas, materializando esculturas antropozoomorfas. No início de sua produção, modelava figuras de animais que encontrava perto de casa, como galinhas, vacas e lagartos. De certa maneira, retomava as brincadeiras de infância, quando criava pequenas figuras para brincar. 

Com o tempo, passou a reinventar suas criações com composições complexas: séries de cabeças interligadas em arcos, sustentadas por uma base em forma de moringa ou cabaça; lagartos com pés de gente; cabeças humanas com marcante economia de formas, nas quais o nariz se une ao cabelo. Um de seus estilemas é a modelagem dos olhos com o formato de grão de café, solução pouco utilizada pelos ceramistas da região. 

A inspiração para suas criações vinha da natureza. Ulisses entendia que suas obras eram a manifestação da voz das estrelas, das plantas e dos animais. Eduardo Subirats, filósofo e crítico de arte, escreveu que Ulisses “esculpia em barro os espíritos que povoam o cerrado”. Talvez por isso Ulisses dizia que suas peças conversavam com ele, eram manifestações vivas. Sobre essa relação com a natureza, sua filha Margarida lembra: 

“Meu pai não era bom de contar, sabe, a história do trabalho dele, não. Mas ele sempre dizia que vinha da imaginação dele, né? Ele conversava com as estrelas, com as árvores, e que elas ensinavam ele como que era para criar o trabalho dele. Ele falava também que, quando ia dormir, sonhava com as peças que ele ia fazer. Falava que conversava com as estrelas, com os rios, com as árvores, com os pássaros. Aí, dessas conversas dele com a natureza, vinha a imaginação.” — Margarida Pereira Silva. 

Entre seus seguidores, Margarida é quem produz as peças mais parecidas com as do pai, pois tomou para si a missão de continuar seu legado. José Maria também segue o estilo de Ulisses, mas busca recriar as peças a partir de um estilo mais pessoal. 

Dos três, Rosana é a mais disruptiva: a partir do repertório do avô, rearranjou as partes humanas e de bichos para criar figuras de casais, com corpo de gente e cabeça de bichos. Assim, em seu mundo fantástico, noivas galinhas se casam com bois, casais namoram, pousam abraçados ou dançam, como nas peças Baile dos Bichos. Há também cenas bem-humoradas, em que as noivas carregam ou arrastam os noivos, que parecem resistir, fraquejar ou desistir. 

Uma característica marcante do trabalho da família é a economia no uso das cores, pois apenas três são utilizadas: o marrom claro da argila de modelar, o marrom avermelhado do tauá e o branco da tabatinga. Com o vermelho e o branco, criam detalhes das figuras, como sobrancelhas, olhos e bocas, botões, golas das roupas, além de desenharem flores, aves e pétalas/penas/folhas para a ornamentação. O uso do branco, na maioria das vezes, acontece sobre o vermelho na forma de pequenos pontos, criando um contraste que chama a atenção e povoa as peças com pequenas luzes ou estrelas, sendo impossível não lembrar das falas de Ulisses. 

Rosana, com suas peças, cria novo uso para as cores, pois o branco aparece em bloco nos vestidos das figuras femininas e na camisa dos personagens masculinos. O vermelho é a cor dos termos, dos detalhes e do contorno da base de suas figuras. 

O barro é coletado em barreiros localizados no povoado e, recentemente, vem do terreno de um primo de Margarida e José Maria. É preparado sem o uso de máquinas. Após a modelagem, as peças são queimadas em fornos a lenha por 6 a 8 horas, dependendo do tamanho da peça. 

Referências 

FROTA, Lélia Coelho. Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro: século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. 

MASCELANI, Angela. Caminhos da arte popular: o Vale do Jequitinhonha. Rio de Janeiro: Museu Casa do Pontal, 2008. 

PONTES, Edna Matosinho de. Eu me ensinei: narrativas da criatividade popular brasileira. São Paulo: Via Impressa Edições de Arte, 2017. 

SUBIRATS, Eduardo. O último artista. Arte popular e cultura digital. Arquitextos, São Paulo, 056.00, ano 05, janeiro 2005. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.056/508. Acesso em: 17 de junho de 2024. 

As citações de Margarida Pereira Silva foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 15 de maio de 2024.

 

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