“Eu digo que a arte me escolheu. Eu saí, voltei e não saí mais.” – José Lourenço
História de vida
José Lourenço Gonzaga (1964), também conhecido como Zé Lourenço, nasceu em Juazeiro do Norte – CE, “aos pés da Igreja Nossa Senhora das Dores”. Atualmente é o maior xilógrafo do Ceará e um dos mais importantes do Brasil.
Sua mãe vendia frutas e verduras no mercado, e seu pai era agricultor. Seu avô, Pedro Gonzaga, era tipógrafo e trabalhava na antiga tipografia São Francisco, que mais tarde seria rebatizada de Lira Nordestina. Atraído pelo mundo das letras, gravuras e papéis de seu avô, Zé Lourenço cresceu brincando na gráfica, varrendo aparas de papel e dobrando cordéis recém-impressos. Também foi na gráfica que aprendeu a ler e a escrever, apesar de ter frequentado a escola até a quarta série.
Na juventude, passou algum tempo viajando entre Iguatu e Juazeiro do Norte para trabalhar na roça com o pai, principalmente em plantações de algodão. Em 1983, ao visitar Juazeiro e a tipografia, decidiu ficar ali. Seguindo os passos do avô, começou a trabalhar como tipógrafo e impressor.
A xilogravura entrou em sua vida entre 1985 e 1986, ao perceber que faltavam xilógrafos para criar as capas de cordéis:
“Nessa época tinha o mestre Stênio Diniz e o mestre Abraão Batista. Diniz tinha viajado para a Alemanha e o mestre Abraão Batista dava aula, ele era professor universitário. Então, Expedito, que era o gerente da gráfica, ficava maluco porque o pessoal dessa época só queria que as capas fossem em xilogravura, porque era uma arte a mais: a arte do desenho, a arte de entalhar a madeira e a arte gráfica. E o Expedito ficava doido para alguém fazer as capas. Aí um dia, eu vendo isso, comecei a tentar fazer uma capa de cordel. Até copiei a capa de um cordel chamado ‘Zezinho e Mariquinha’. Mas não gostei, cortei o olho do homem e a boca da mulher ficou toda torta, e joguei pra lá, dizendo que aquilo não era pra mim não.” – José Lourenço.
Atento a esse interesse de Zé e precisando dar conta da demanda, Expedito decidiu que Zé Lourenço faria a capa para um cliente que precisava da impressão na mesma semana. Angustiado, Zé não podia negar o trabalho, pois era recém-casado, o dinheiro era pouco e vivia com dificuldades. Foi para casa preocupado, pensando em como faria a xilogravura para a capa do cordel. Arranjou pedacinhos de madeira descartada de uma serraria perto de sua casa e passou a noite cortando o “taco”, como chamavam a xilogravura na época. No outro dia, chegou na tipografia cedinho para tirar a impressão da capa, que foi aprovada com gosto pelo cliente. Depois disso, não parou mais e passou a cortar capas de cordéis, embalagens, logos de empresas e tudo que tivesse aplicação para a xilogravura.
Em 1990, incentivado pelo professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, fez um álbum chamado “A Vida do Padre Cícero”, que conta a história do santo. O álbum demorou muito tempo para ser concluído, pois Zé ainda tinha muita dificuldade com desenho. Gilmar de Carvalho chegou, inclusive, a pousar como modelo. O álbum foi um sucesso e ganhou um prêmio no Salão de Abril de 1991.
Produziu outros álbuns, como “Vida e Poesia do Patativa do Assaré”, “Via Sacra”, “Lira Nordestina”, entre outros. Com uma produção artística de fôlego, participou de várias exposições individuais e coletivas em diferentes estados brasileiros e no exterior. Ilustra livros, além de continuar a produzir capas de cordéis, e participa ativamente de feiras e eventos literários, mantendo viva a relação entre a xilogravura e as histórias.
Desde 1996, com o falecimento de Expedito Sebastião da Silva, é diretor artístico da tipografia Lira Nordestina, em um cargo extraoficial e não remunerado. Sua participação ativa na tipografia e sua preocupação foram essenciais para o estabelecimento de parcerias com outras instituições, dando novo fôlego para as atividades ali realizadas. Inquieto, está sempre em busca de novas estratégias, como o uso da tecnologia e das redes sociais, para reinventar os usos da xilogravura. Também se dedica a ministrar oficinas de xilogravura, impressão e tipografia, estimulando o surgimento de novos talentos – inclusive femininos, nesse universo muito masculino – perpetuando uma expressão artística que, desde os anos 1950, dizem que vai desaparecer.
Obra e processo criativo
José Lourenço é tipógrafo, xilógrafo e impressor, dominando todas as etapas do processo de impressão de um cordel. É na xilogravura associada à impressão, contudo, que seu ofício adquire expressão estética e potência criativa. Suas temáticas favoritas são as histórias de sua terra, como a religiosidade, a agricultura, as cenas do cotidiano, as festas e folguedos, além da vida e obra de personalidades locais, como Patativa do Assaré e Padre Cícero.
Seu processo criativo na gravação parece manter a relação original que a xilogravura constituiu com o texto na história da Lira Nordestina, pois sempre é a partir de um texto – ou de uma história – que José Lourenço compreende o que precisa ser expresso em forma de imagem. Busca, então, as melhores soluções estéticas para que o desenho seja capaz de transmitir uma narrativa e provocar emoções:
“Eu sou um artista que não me prendo àquela coisa da gravura quadrada certinha, eu procuro outras experiências. Por exemplo, em 2018, a gente foi à Itália, em Milão, e visitou o museu de Leonardo da Vinci, onde vimos aquelas obras belíssimas. Eu já tinha feito algumas releituras da obra de Da Vinci, mas ver era impressionante. Então eu aproveito esses momentos como se fosse uma pesquisa, né? Os Autos que eu fiz até hoje, todos eles, têm a história daquilo, eu não faço por fazer. Tem, por exemplo, o álbum do Patativa do Assaré, que a gente começou a fazer uns esboços. Eu já conhecia o Patativa porque ele frequentava a Lira, mas a gente não tinha noção da força poética dele. A gente foi várias vezes para Assaré e vimos Patativa recitando o poema ‘A Terra é Naturá’, em defesa da reforma agrária, e foi aquela coisa maravilhosa. E eu olhei o esboço que eu tinha feito e não tinha nada a ver com aquela força que ele mostrava pessoalmente. Então eu rasguei os esboços todos e comecei tudo de novo. Eu gosto muito de pesquisar. Quando faço uma gravura que é um retrato de uma pessoa, peço que me mande um pouco da história daquela pessoa para eu sentir, para não fazer só aquela imagem dura. É porque a nossa gravura, como ela veio para contar uma história, ela necessita disso aí. Precisa de um texto para a gente conseguir transmitir essa imagem.” – José Lourenço.
A primeira etapa do trabalho é dedicada a ler o texto do cordel ou da história que será contada pela xilogravura. Depois dessa primeira pesquisa, faz esboços em papel para estudar a melhor maneira de representar a história. Com o esboço definido, prepara a madeira com lixas e transfere o desenho do esboço para ela. Passa então ao entalhe, ou como costumam dizer, corta o desenho. A madeira mais utilizada é a umburana, a mesma em que os artesãos de Juazeiro do Norte entalham suas esculturas.
Com o desenho cortado, a matriz segue para impressão de teste, momento em que é avaliado se é necessário fazer alguma alteração, clarear alguma parte ou cortar mais alguma coisa. Zé Lourenço ressalta que, sem o domínio da técnica de impressão, não é possível transmitir a mensagem do desenho. Por isso, a técnica do impressor é tão importante quanto a do xilógrafo.
A produção artística de Zé Lourenço segue a estética da “escola do Cariri” de xilogravura, em que as cenas são bem preenchidas, com fundos riscados e volumosos, predominando o uso do preto e do branco. Essa estética difere da produção da “escola de Caruaru”, de Pernambuco, onde os elementos do desenho são mais livres, com espaços em branco entre eles, permitindo o uso de várias cores, como nas obras de J. Borges.
Apesar do predomínio do preto e branco, José Lourenço gosta de experimentar e testar o uso de cores, imprimindo o fundo com uma cor para depois sobrepor o desenho em preto. As cores mais usadas são o amarelo e o vermelho acobreado, pois remetem às cores de sua terra.
A Lira Nordestina e a xilogravura
A Lira Nordestina é a mais importante editora de cordéis do Brasil. Foi fundada em 1932 pelo alagoano José Bernardo da Silva, que, anos antes, foi em romaria a Juazeiro do Norte para pedir bênçãos ao Padre Cícero. Com o nome de Tipografia São Francisco, em pouco tempo se tornou a editora de cordéis mais importante do Brasil.
Existem registros do uso da xilogravura em jornais de Juazeiro do Norte desde pelo menos 1909, mas só mais tarde ela se popularizou. No início, as capas de cordéis eram feitas em clichês de zincografia, encomendados de Maceió ou Recife. Na década de 1940, as capas passaram a ser produzidas em xilogravura. Essa mudança ocorreu devido ao aumento de pessoas circulando por Juazeiro do Norte por causa da intensificação das peregrinações religiosas. Com tantas pessoas interessadas em adquirir folhetos que contassem a história de Padre Cícero, por exemplo, a impressão precisava ser mais rápida. Os clichês não davam conta da demanda e, para serem trocados ou encomendados, levavam mais de 10 dias para serem produzidos.
As primeiras capas em xilogravura foram produzidas por nomes como Walderêdo Gonçalves, Mestre Noza, Seu João Pereira, Seu João Batista, entre tantos outros, muitos deles entalhadores de imagens, que passaram a copiar os clichês originais em tábuas de madeira umburana. É interessante notar que, nesse período, os xilógrafos não possuíam domínio técnico e não tinham acesso às goivas para o entalhe e precisavam improvisar ferramentas, como facas de serra de cortar pão, cacos de vidro e pregos.
A partir de 1972, com a morte de José Bernardo da Silva, a Tipografia São Francisco passou por muitas dificuldades econômicas, até ser comprada pelo Governo do Estado do Ceará e ficar sob os cuidados da Universidade Regional do Cariri. Foi nesse período que passou a se chamar Lira Nordestina, nome dado pelo poeta Patativa do Assaré. Atualmente, a Lira Nordestina não tem caráter comercial de impressão de cordéis, tornando-se um centro cultural que acolhe artistas, cordelistas, impressores e xilógrafos apaixonados pela cultura do cordel.
A Literatura de Cordel foi reconhecida como patrimônio cultural do Brasil em 2018 pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Referências
CARVALHO, Gilmar de. A tradição contemporânea da xilogravura popular de Juazeiro do Norte. Revista TB, Rio de Janeiro, n. 147, p. 45-54, out./dez. 2001.
FREIRE, Rosangela Vieira. Tipografia São Francisco/Lira Nordestina: Práticas culturais, discurso e memória. 2012. 237 f. Tese (Doutorado em Linguística e Ensino) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2012.
MOTA, Leonardo; GONZAGA, José Lourenço (ilustração). Brutalidade. Brasília, D.F.: Confraria dos Bibliófilos do Brasil, 2016.
As citações de José Lourenço foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 3 de maio de 2024.