“A floresta é minha vida, é minha fonte de abastecimento. Mesmo estando aqui [Cruzeiro do Sul], eu preciso de vez em quando estar na floresta, eu preciso me reabastecer e aí eu volto ao meu Eu e tenho mil ideias. Lá eu vejo os beija-flores, o voo dos tucanos que eu adoro, os rios correndo por entre a vegetação, as diferentes tonalidades de águas.” – Maqueson.
História de vida
Maqueson Pereira da Silva (1958) nasceu no Seringal Grajauzinho, na margem direita do Rio Juruá, quando Porto Walter ainda era um distrito do município de Cruzeiro do Sul – AC. Ali viveu até os 5 anos, época em que sua família se mudou para a Flora, uma comunidade localizada a cerca de 3 km rio acima, na margem esquerda.
Filho e neto de seringueiros, seus avós migraram de Sergipe e do Ceará para o Acre em busca da riqueza da borracha. Primeiro filho de cinco irmãos, ouvia de seu pai que aprenderia a ler e seria doutor, expectativas que encorajaram seus sonhos. Seu avô, cego pela fumaça de coagular borracha, ensinou-o a ler com uma Cartilha de ABC e a contar com grãos de milho e feijão.
Maqueson cresceu no meio da floresta, encantado pela magia das rimas que seu avô declamava de cor e pelas histórias inventadas pelo pai, nas quais o menino era sempre o herói. Com o pai, aprendeu a construir barcos e cortou seringa, enfrentando os igapós repletos de peixes elétricos que dão choques doloridos.
Do pai também ouviu a promessa de que, se aprendesse a ler e escrever, poderia estudar com os padres alemães. Assim, com 14 anos, mudou-se para Porto Walter para estudar no Colégio José de Anchieta dos Padres da Congregação do Espírito Santo. Cumpridor da promessa, seu pai remava por dois dias para descer o rio e três dias para subir nas viagens das férias ao longo de quatro anos.
Seu interesse em aprender e sua dedicação logo chamaram a atenção dos padres, que o estimularam a continuar seus estudos como seminarista. Sem nunca ter saído da floresta, Maqueson mudou-se para Salete, em Santa Catarina, com 18 anos. A mudança repentina para um local completamente desconhecido, com coisas que nunca havia visto, causou-lhe um misto de sentimentos que demoraram anos para ser compreendidos e se encaixarem.
Sentia muita saudade de casa no seminário, pois não encontrava na vegetação e na geologia dali nada que lembrasse sua floresta. Em uma tentativa de se reencontrar, sentiu a necessidade de contar suas próprias histórias e tentou realizar algumas pinturas, deixando-o muito insatisfeito. Até que a marchetaria se impôs como uma rememoração:
“A marchetaria surge quando eu não esperava. Eu nunca tinha ouvido falar em marchetaria. Eu fui estudar marcenaria, era obrigatório para atuar em localidades carentes de mão de obra especializada. Um dia, chegaram dois padres enquanto eu estava cortando quatro pedacinhos de madeira para fazer uma Nossa Senhora bem simples para um cartão de Natal. O padre chegou e perguntou o que eu estava fazendo. Eu quis desconversar, mas ele disse: ‘Isso que você está fazendo chama marchetaria. Se o senhor for para a Itália, pode aprender; os italianos trabalham muito bem com isso aqui. Mas o senhor precisa estudar desenho.’” – Maqueson
Com o padre alemão, chamado Theodoro Bang, Maqueson passou a estudar desenho. Também recebeu orientações do Irmão Guilherme Shüler, imprescindíveis para seu aprendizado na marchetaria. Seus primeiros trabalhos foram geométricos, mas logo passou a compor imagens mais complexas com temas religiosos. Com a venda de três quadros de Nossa Senhora, conseguiu juntar dinheiro para voltar ao Acre e visitar sua família nas férias.
Voltar para casa, ainda que sua família já morasse na cidade de Cruzeiro do Sul, revirou suas angústias e saudades. Hesitante sobre se deveria mesmo seguir com o seminário, decidiu tirar um ano de férias para ficar com a família. Em pouco tempo, por força da educação corporal que recebera, acabou voltando ao seminário, dessa vez em Cruzeiro do Sul, a convite do padre alemão Herbert Douteil, carinhosamente chamado de padre Heriberto. É com o apoio desse mestre amigo que se aperfeiçoa na arte da marchetaria, tendo contato com o primeiro material didático sobre a técnica. E é também padre Heriberto quem intermedeia sua ida à Alemanha e à Itália para aprofundar seus estudos.
Nas idas e vindas entre o Acre e o sul do Brasil que se seguiram, Maqueson enfim entende que o seminário não é o seu caminho. Casa-se com a catarinense Linda, com quem teve três filhas, e decide, por fim, mudar-se definitivamente para Cruzeiro do Sul, onde instala sua oficina de marchetaria. Com a atuação de sua esposa Linda na administração da empresa, aos poucos consolida seu trabalho e seu negócio, construindo uma empresa com identidade única no Brasil. No início, sua oficina se chamava “Da Vinci Trabalhos Artísticos”, em homenagem ao pintor. A mudança do nome para “Marchetaria do Acre” aconteceu por sugestão do então governador Jorge Viana, para dar mais visibilidade ao estado.
Atualmente, sua oficina-escola oferece oportunidades de trabalho e renda para aqueles que têm vontade de aprender. Além de oferecer o treinamento em marchetaria, Maqueson inclui na formação conteúdos básicos que aprendeu no seminário, como Ética, Moral, Disciplina e ritmo de trabalho. Emprega 35 funcionários que trabalham sob sua direção artística e produzem, em média, 350 peças por mês.
Já participou de exposições individuais e coletivas. Suas peças são vendidas, no Brasil, principalmente para os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. No mercado internacional, exporta para o Oriente Médio, França e Itália. Em 9 de dezembro de 2028, recebeu o título de mestre pelo Programa do Artesanato Brasileiro – PAB.
Obra e processo criativo
A marchetaria é uma técnica muito antiga, que consiste em incrustar lâminas de diferentes materiais, como metal, marfim e madeira, em uma superfície para produzir um efeito decorativo. Maqueson trabalha com um tipo específico de marchetaria, por meio da sobreposição de finíssimas lâminas de madeira sobre madeira para criar imagens elaboradas. Suas peças causam deslumbramento pela riqueza de detalhes, cores únicas e efeitos de luz e sombra. A precisão técnica aliada às escolhas temáticas resulta em desenhos com volume, profundidade e surpreendente realismo.
Em suas peças, usa lâminas com espessura de 0,5 a 0,7 mm de mais de 150 tipos de madeiras, oriundas da floresta amazônica e dos descartes da indústria moveleira. As cores são naturais, literalmente fermentadas em uma misteriosa alquimia que une as fibras da madeira aos minerais da terra:
“Aqui há muitas árvores que caem por ação natural e ficam nos leitos dos rios. E aqui nós temos águas mais claras e águas mais escuras. As águas mais escuras, tipo as do Rio Negro em Manaus, têm um outro tipo de nutriente. Essas madeiras ficam 2, 3, até 5 anos ou mais nos rios, encharcam e os nutrientes que estão na água fazem com que a madeira fermente e trabalhe quando exposta ao ar. Daí vêm várias tonalidades, saindo do azul claro para o amarelo, de acordo com o solo também. Isso tudo, para mim, é matéria-prima de primeira qualidade e eu utilizo inclusive as raízes, que são a parte mais nobre da árvore. Eu aprendi isso na Alemanha. Os galhos retorcidos que dão movimento, plasticidade, leveza, e de outros vêm o contraste. Então é saber explorar as potencialidades da madeira.” – Maqueson.
É por meio da justaposição das cores, dos efeitos de contraste e do uso estratégico das manchas e variações da própria madeira que imagens da floresta ganham vida. Da floresta porque é dela que vêm a matéria-prima e a inspiração temática. Nada mais apropriado que o próprio colorido da madeira das árvores para recriar, em caixas, clutchs e marca-páginas, a exuberância das cores e das formas das araras, tucanos, beija-flores, toda a sorte de aves e outros animais que povoam suas copas. Algumas peças fascinam pelo inesperado realismo de “zoom in” em penas, asas de borboletas e escamas, apresentando padrões que provocam a curiosidade sobre a qual animal pertencem. A flora, como não poderia deixar de ser, também é trabalhada em composições surpreendentes, assim como cenas da paisagem acreana que podem ou não estar povoadas por humanos.
Maqueson também domina grandes formatos, produzindo painéis em grandes dimensões com impressionante efeito plástico. Destacam-se os painéis de doze metros cada do Teatro Plácido de Castro em Rio Branco – AC e a “Paisagem Amazônica com Pavãozinho do Pará”, encomendado pelo Banco da Amazônia em Belém – PA. Mas nenhum se compara ao conjunto de obras “História da Revolução Acreana” na Assembleia Legislativa do Acre, com imensos painéis que contabilizam 36 metros de comprimento, talvez o maior conjunto de marchetaria em todo o mundo.
Dos céus à terra, das águas às matas, Maqueson conta as histórias de uma floresta que é sua, fermentada em sua alma e seu coração como as cores de sua matéria-prima. Assim como em suas madeiras, é por meio de uma existência compartilhada entre dois mundos que a criação se manifesta:
“Eu sou um contador de histórias. Eu confecciono trabalhos com determinados temas, uma ave, um animal, uma paisagem, retratando um pôr do sol que eu vi ou vivi, algo que me é comum, me é familiar. Esses dois mundos de cores e formas completamente diferentes, o mundo da floresta virgem que eu saí e o mundo dos grandes centros urbanos onde está o conhecimento, mexem muito comigo e eu fico no meio, procurando ser Eu. Então eu optei por esse primeiro, da floresta virgem, que me parece mais meu, sem perder de vista onde está o conhecimento.” – Maqueson.
Escolha que implicou tomar conhecimento das próprias dores e medos para, enfim, tomá-los como motor de criação. Medos e dores que só quem viveu nas profundezas da floresta poderia conhecer: a apreensão de não saber se o pai chegaria vivo do seringal no final de cada dia, o receio de caminhar na mata e ser surpreendido por um animal, e a dor do choque dos poraquês ao atravessar igapós com a água na altura do peito.
“A minha fonte de inspiração está ligada à floresta. E isso demorou, porque eu me senti tão europeu e de lá eu olhava o Acre e pensava que não voltaria mais para cá. De repente, eu precisei voltar às minhas origens e às minhas raízes. E saber que aquilo que eu estava vendo era apenas uma casca, não era eu. O Maqueson é um caboclo.” – Maqueson.
Tanta beleza só poderia nascer pelas mãos de um caboclo, filho de dois mundos.
Referências
MAQUESON. A Marchetaria da Floresta (The Marquetry of the Forest). Catálogo. Belém: Banco da Amazônia S.A, 2007.
As citações de Maqueson foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 24 de maio de 2024.