Mestra Irinéia – AL

“Eu não tenho outra arte. A arte que Deus me amostrou foi essa. Nunca fui na escola, não tenho leitura, mas a leitura que eu tenho hoje é a minha arte e eu tô bem satisfeita. Eu não paro não, é uma tradição que eu tenho que levar até Deus dizer ‘Hoje não pode mais’. É uma terapia para mim.”

 

História de vida

Irinéia Rosa Nunes da Silva (1947) nasceu em Muquém, povoado remanescente do Quilombo de Palmares, localizado no município de União dos Palmares – AL. Filha de paneleiras, ofício comum das mulheres de Muquém, Mestra Irinéia teve contato com o barro desde criança, ajudando sua mãe no trabalho e fazendo o acabamento das peças. Com o falecimento de seu pai, a situação econômica da família ficou muito difícil e Irinéia precisou trabalhar como doméstica aos nove anos de idade.

Quando fez 19 anos, casou-se com seu primeiro marido. Teve quatro filhos, mas um faleceu. Sofreu bastante nesse casamento; o marido era alcoólatra e chegaram a não ter onde morar. Caminhavam de cidade em cidade a pé, pedindo esmolas e procurando algum trabalho para conseguir dinheiro. Juntando as forças que tinha, separou-se do marido e lutou para juntar algum dinheiro para voltar para Muquém.

De volta ao seu povoado, casou-se com Antônio, com quem teve seis filhos. Juntos trabalharam no corte da cana, mas logo Irinéia redescobriria sua vocação para o barro. Enquanto Antônio continuava a trabalhar no barro, Irinéia começou a modelar figuras com o barro, produzindo o que chama de “promessas”, ex-votos a pedidos de fiéis para pagar promessas. Um dia, uma moça que estava com muita dor de cabeça e não melhorava com nenhum tratamento se curou ao pedir a intervenção de uma santa. Para pagar sua promessa, encomendou uma cabeça de Irinéia. Assim teve início a produção de suas cabeças, que mais tarde se tornariam as peças mais procuradas.

No começo, as peças eram modeladas em barro cru e eram maciças, de forma bem rudimentar. Ao notarem o pioneirismo do trabalho figurativo de Irinéia no povoado, o Sebrae passou a estimulá-la a melhorar o acabamento. Passou então a queimar as peças e aprimorou cada vez mais seu trabalho.

Quando saiu a aposentadoria de seu Antônio, ele passou a trabalhar com a esposa. Mesmo sendo filho de paneleiras e já tendo feito telhas e tijolos, foi com Irinéia que aprendeu a modelar. Além de ser responsável por coletar o barro no barreiro e prepará-lo para a modelagem, criou uma série de inovações em parceria com a mestra, como é o caso da peça “O Beijo”. Em 2020, seu Antônio faleceu vítima de COVID-19, deixando muita saudade:

“Ele sempre dizia: ‘Oh, minha veia, tinha o prazer de quando me fosse embora eu levava você também.’ E eu dizia: ‘Ah, meu fio, não existe isso não. A gente só vai quando Deus marca o dia, os dois juntos não existem, não.’ Já tem acontecido, né, mas é muito difícil. O Beijo foi ele que criou. Depois que ele partiu, eu fiquei tomando conta dos Beijos, fiquei fazendo. Tinha um professor da UNEAL que gostava de fazer muita graça com a gente. E ele chegava aqui e dizia: ‘Olha, eu vou botar vocês dois pra se beijar pra fazer uma foto para combinar com a estátua que tem em Maceió.’ Ele fez dois quadros com a foto.”

A escultura à qual a mestra se refere fica às margens da Lagoa da Anta e faz parte do “Circuito Alagoas Feita à Mão”. Trata-se de uma reprodução de “O Beijo”, instalada em 2018, feita com fibra de vidro e isopor naval.

Mestra Irinéia foi a primeira ceramista a criar peças figurativas em Muquém, influenciando muitos outros artesãos e artesãs do povoado. Em reconhecimento à importância cultural e artística de sua produção, foi reconhecida como Patrimônio Vivo de Alagoas em 2005. Em 2016, o Espaço de Memória Artesã Irinéia Rosa Nunes da Silva foi criado em sua homenagem e salvaguarda artefatos cerâmicos produzidos pelos artesãos e artistas de Muquém. Está localizado no campus V da Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL, em União dos Palmares. Em 2024, recebeu a Comenda Lêdo Ivo da Assembleia Legislativa de Alagoas.

Obra e processo criativo

Mestra Irinéia gosta de trabalhar na área coberta de seu quintal, cercada pelas plantas que tanto ama. Com idade avançada e problemas de saúde, tem produzido cada vez menos e conta com a ajuda de sua filha, Mônica Nunes da Silva, e seu genro, José Claudio Silvino Nunes. Sua irmã, Eroina Rosa da Silva, também ajuda na produção das peças.

José Claudio é o responsável por coletar o barro no barreiro. Corta os torrões com facão e amassa até que chegue ao ponto certo para a modelagem. Mestra Irinéia dedica-se mais à criação das peças, enquanto o acabamento com raspagens e alisamento com um espeto de metal são feitos por Mônica ou José Claudio.

Suas peças mais conhecidas e vendidas são as cabeças. Chamadas por algumas pessoas de “cabeças africanas”, são marcantes por trazerem os traços fisionômicos característicos de pessoas negras. Em certa medida, os olhos amendoados, o formato marcante do nariz e lábios protuberantes guardam semelhança com certas máscaras tradicionais da arte africana. Também chama a atenção a diversidade de penteados e barbas, criados a partir da imaginação e fontes inusitadas de inspiração. Uma de suas cabeças mais procuradas, com dois “totozinhos” na cabeça, como diz Irinéia, foi inspirada no penteado da personagem Mamuska, interpretada por Rosi Campos na novela “Da Cor do Pecado”, da Rede Globo. Algumas cabeças com bobes no cabelo, por sua vez, foram inspiradas na Dona Florinda, do seriado mexicano “Chaves”.

Irinéia também conta com o barro episódios marcantes de sua vida, em especial a grande enchente do rio Mundaú que atingiu o povoado de Muquém em 18 de junho de 2010. Com o transbordamento do rio e o alagamento do povoado, 52 pessoas subiram em um pé de jaca e passaram a noite em seus galhos. Algumas mulheres seguravam crianças, cachorros e galinhas. A jaqueira, hoje, já não existe mais.

Já Irinéia se salvou subindo em uma pilha de lenha com mais quatro pessoas. Por uma sorte do destino, a pilha de lenha havia sido feita dois dias antes da enchente, com madeiras antigas descartadas da reforma de uma estrada de ferro. As obras “A Jaqueira” e “A Lenha”, que representam essas duas cenas, eternizam na cerâmica esse episódio que mudou a vida de todos os moradores do Muquém. Com a destruição das casas, o Governo do Estado de Alagoas construiu 120 casas para as famílias em um terreno mais alto, que formam a chamada “Nova Muquém”.

Há também a famosa peça “O Beijo”, que foi criada por seu Antônio. Originalmente, representa ela e seu marido se beijando, mas Irinéia já criou outras variações. Também faz imagens de santos, como Nossa Senhora e São Francisco, não sem ter alguns atritos com o pastor de sua igreja. Desde que passou a ser evangélica, não deixou de produzir as imagens porque entende que o que está fazendo é um trabalho, não veneração.

O barro é coletado em um barreiro que fica no Muquém Velho, mais perto do rio Mundaú. As peças são queimadas em um forno a lenha construído no quintal de Mônica, que mora na mesma rua que a mãe. Além de ajudar a mãe na modelagem e acabamento das peças, Mônica é responsável pela queima, por cuidar dos pedidos e fazer as entregas.

Mestra Irinéia repassou seus conhecimentos para os filhos e netos. Além de Mônica, seu filho Francisco produz peças figurativas em estilo próprio, criando carrancas. Seu neto Antônio aprendeu a modelar só observando. Com sua engenhosidade infantil, vendeu a primeira peça para três pessoas diferentes da família, arrancando risadas de sua tia e avó.

O povoado de Muquém

O Quilombo de Palmares foi o maior quilombo do Brasil e estima-se que tenha tido mais de 20 mil habitantes. Foi formado por escravizados fugidos de engenhos de cana de açúcar e localizava-se na Serra da Barriga, na então Capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas. Em 1694, foi destruído e seu líder, Zumbi dos Palmares, executado.

O povoado de Muquém é reconhecido como o único remanescente do Quilombo de Palmares. Nas histórias locais, Muquém foi fundado por um casal de sobreviventes, Maria Camila da Conceição Nunes e Leopodino Bezerra da Silva, que desceram a Serra da Barriga e criaram um quilombo perto do rio Mundaú. Contam ainda que a palavra Muquém vem de uma língua banto e significa esconder ou escondido.

Localizado a cinco quilômetros da cidade de União dos Palmares e a 80 quilômetros de Maceió, é formado por 170 famílias e cerca de 800 pessoas. As principais atividades econômicas são o artesanato em cerâmica, a agricultura de subsistência e o turismo.

Referências

COSTA, Jairo José Campos da; SILVA, Sérgio Rogério Oliveira da (Org.). Existências Compartilhadas: Biografias de Artistas que Integram a Coleção do Museu Universitário Muquém. 1ª Edição. Maceió: Editora Olyver, 2021.

PONTES, Edna Matosinho de. Eu me Ensinei: Narrativas da Criatividade Popular Brasileira. São Paulo: Via Impressa Edições de Arte, 2017.

As citações de Mestra Irinéia foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 16 de abril de 2024.

 

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