Mestre Espedito Seleiro – CE

“Tudo o que eu faço hoje é inspirado no vaqueiro, no cigano e na paisagem. A paisagem faz parte do sertão e o vaqueiro faz parte da paisagem. E por isso é que eu gosto de me inspirar na paisagem. É o que traz toda a felicidade.” – Espedito Seleiro.

 

História de vida

Espedito Velozo de Carvalho (1939) nasceu em Arneiroz, no Sertão de Inhamuns, Ceará. É artesão da quinta geração de seleiros em sua família, seguindo os passos de seu pai, avô e bisavô, que também carregaram a alcunha de “Seleiro”. Seu pai, Raimundo Seleiro, que era vaqueiro de dia e seleiro à noite, de tempos em tempos mudava-se com sua família em busca de melhores lugares para trabalhar. De Arneiroz, passaram uma temporada em Campos Sales e Nova Roma, distrito de Tamboril, até chegar em Nova Olinda, quando Espedito tinha por volta de 10 anos de idade.

Nova Olinda, localizada na Chapada do Araripe, na região do Cariri cearense, tinha, na época, forte vocação para a criação de gado, com grandes fazendas. Também era um ponto de passagem estratégico, onde paravam tropeiros e ciganos. Essas características tornavam-na o local ideal para um artesão seleiro se instalar, com a certeza de encontrar compradores para selas, chapéus e gibões.

Foi com o pai que Espedito aprendeu a trabalhar o couro. Seu aprendizado teve início aos 8 anos de idade, na mesma época em que também aprendia a ser vaqueiro. Mas um acidente logo mudaria tudo: aos 12 anos, sofreu uma queda de cavalo ao perseguir um boi bravo e desistiu da lida, concentrando-se apenas em trabalhar com o couro.

Casou-se em 1960 com Francisca Brito de Carvalho, com quem teve seis filhos. Com a morte do pai em 1971, Espedito herdou muita responsabilidade. Além de cuidar de sua família, precisou sustentar seus irmãos mais novos. Levou-os então para Nova Olinda e os ensinou a trabalhar com o couro para ajudar no sustento.

Sua primeira peça colorida foi uma sela, encomendada por um cigano, que hoje está salvaguardada no Museu do Couro de Nova Olinda, contíguo à sua loja e oficina:

“O cigano me pediu para eu fazer uma sela diferente, que eu nunca tivesse feito para ninguém. Eu queria criar um modelo que só ele tivesse. Aí eu tive que me virar para fazer a tinta, porque eu não encontrei a tinta para comprar. O couro tudo era natural, e eu fiz a tinta. O marrom eu fiz com a casca do angico, fiz o couro ficar marrom. Aí eu fiz o vermelho com a base do urucum, o branco com a decocada da cinza da caatingueira. E o preto eu enterrei o couro na lama do rio. E o azul eu fiz com o anil.” – Espedito Seleiro.

Com a decadência da agropecuária em Nova Olinda e as mudanças na cultura do vaqueiro em todo o Nordeste, que passaram a lidar com o gado de moto em pastagens cultivadas, Espedito viu as vendas de selas e gibões diminuírem cada vez mais. Passou então a produzir sapatos, que levava para vender na feira, mas ainda não conseguia vendas suficientes para sustentar sua família. Percebeu que precisava criar algo completamente novo, que fosse único e se destacasse. A oportunidade veio na década de 1980, com uma encomenda de Alemberg Quindins, idealizador da Fundação Casa Grande Memorial do Homem do Cariri, em Nova Olinda. O pedido era especial: Alemberg queria que Espedito fizesse uma sandália de Lampião com solado quadrado para despistar os volantes, do mesmo modelo que seu pai, Raimundo Seleiro, havia feito para o cangaceiro, de acordo com suas memórias de infância:

“O meu pai estava fazendo uma sela, que era para, no outro dia, ir para o campo com a vaqueirama, pegar o boi bravo que existia lá na fazenda onde eles moravam. Naquela época, a vaidade do vaqueiro era montar numa sela nova e vestir um terno de couro bem novinho. Aí se juntavam 10, 20, 30 vaqueiros, e quem pegasse o boi primeiro ganhava um prêmio como um bom vaqueiro. O meu pai estava interessado, aí estava terminando a sela, umas nove horas da noite, lá na fazenda, com a lamparina acesa, na época não tinha energia, e chegou um cara diferente, que ele não conhecia e nem sabia a origem dele. O cara ficou observando e perguntou a ele por que ele fazia a sela muito bem feita. Então ele disse que fazer calçado não era bom, mas se lhe dessem um modelo, ele arriscava a fazer. Aí o cara disse: ‘Me aguarde que eu vou pegar um modelo para você fazer.’ O meu pai ficou com medo do cara, porque ele era todo cheio de arma, mas esperou. Quando foi na hora certa, ele chegou e entregou o modelo riscado em um papel. Aí meu pai disse que estava bom, arriscar. Ele foi embora, e quando foi uns 40 dias depois, chegou a peça estava pronta. E meu pai disse: ‘Mas por que o solado é quadrado?’ O solado é quadrado porque você fez essa peça para o Capitão Virgulino, mas não pode falar nada para ninguém. Meu pai disse que como era a primeira peça, nem ia cobrar. Depois o próprio Lampião mandou um presente para meu pai, um punhal.” – Espedito Seleiro.

Para criar a sandália de Alemberg, Espedito adaptou um molde antigo que guardava do pai e usou os couros coloridos, como havia feito com a sela do cigano. A sandália fez tanto sucesso que começaram a chegar clientes de outras cidades e estados.

Na década de 1990, por intermédio de Alemberg, Espedito recebeu a visita da socióloga e ativista Violeta Arraes Gervaiseau, que encomendou uma bolsa. Novamente, seu trabalho ganhou novo impulso, e Espedito passou a receber encomendas de mais e mais clientes, inclusive do exterior. É Violeta, inclusive, quem percebe o talento de Francisco, filho de Espedito mais conhecido como Maninho, para desenhar, incentivando-o a fazer um curso de desenho. Hoje é Maninho quem domina a parte de design da oficina, criando suas próprias peças.

Espedito Seleiro já fez parcerias com grandes marcas e grifes, como Cavalera, Farm e Cantão. Também possui um expressivo trabalho de mobiliário, em parceria com os Irmãos Campana. Suas peças também já foram figurinos de filmes, como o de Marcos Palmeira em O Homem que Desfiou o Diabo, de Moacyr Góes, lançado em 2007. Também já participou de exposições individuais e coletivas, além de ser convidado para dar várias palestras para estudantes e interessados em design.

Em 2008, recebeu o título de Tesouro Vivo da Cultura do Governo do Estado do Ceará e a Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo Ministério da Cultura, em 2011. Em dezembro de 2014, foi inaugurado o Museu do Ciclo do Couro – Memorial Espedito Seleiro, pertencente ao projeto Ecomuseus no Cariri Cearense desenvolvido pela Fundação Casa Grande. O Museu fica localizado próximo à sua loja e oficina. Em 2017, recebeu o título de Notório Saber pela Universidade Estadual do Ceará (Uece).

Obra e processo criativo

Espedito Seleiro trabalha em uma oficina familiar, que hoje conta com cinco trabalhadores fixos. Os filhos que trabalham na oficina criam as peças seguindo a estética do pai, e Espedito entende que somente após seu falecimento eles encontrarão espaço para criarem seus próprios estilos, assim como aconteceu com ele. Com o propósito de continuar o repasse dos seus conhecimentos e capacitar jovens interessados em aprender o ofício, criou uma associação para sua Oficina-Escola.

Perguntado sobre qual tipo de peça mais gosta de fazer, a resposta de Espedito é rápida:

“Se fosse para você mandar eu fazer só o que eu gosto, eu só fazia sela e gibão. Porque eu adoro fazer sela e adoro fazer gibão. Porque o gibão é uma coisa que ficou marcada como uma tradição nossa, do nosso sertão.” – Espedito Seleiro.

Atualmente, Espedito vende cerca de uma sela por ano. Gibão é mais frequente, mas é um modelo adaptado e estilizado, vendido principalmente para artistas. Mesmo com poucas vendas, Espedito nunca deixa de confeccionar as peças e gosta de mantê-las na oficina e na loja, para poder mostrar para os visitantes a cultura do couro e do vaqueiro, além de contar como sua história começou. Sua produção acaba se concentrando em diferentes artefatos de couro, como bolsas, malas, sapatos e móveis. Seu maior público consumidor é o segmento da moda feminina.

Espedito domina todas as etapas de produção de uma peça, desde o curtimento do couro. Quando assumiu os negócios da família, repassou a tarefa do curtume para um de seus irmãos, de modo a poder se concentrar na criação e confecção. Por uma conjunção de fatores, como a decadência da agropecuária em Nova Olinda, o aumento da demanda por suas peças e a ausência de couro de qualidade produzido na região, precisou começar a comprar o couro já beneficiado e colorido de outros fornecedores, geralmente de outros estados.

A confecção de uma peça começa a partir de moldes de suas partes e desenhos decorativos, que geralmente são de papel, permitindo a reprodução. Espedito, contudo, admite que não é um bom desenhista e tem preferência por riscar e cortar diretamente o couro. Gosta de criar os desenhos no silêncio da noite, quando está sozinho na oficina. O corte, por sua vez, é feito manualmente com faca ou estilete e exige grande firmeza das mãos, como todas as outras etapas do trabalho com o couro.

A união das partes e recortes é feita com cola e costura à máquina. O pesponto, costura com tira fina de couro em cor contrastante que forma um tracejado, possui unicamente função decorativa. Para criá-lo, é necessário fazer cada um dos furos previamente no couro, com um vazador e martelo. Depois, uma tira fina de couro é passada pelos orifícios. Essa última etapa geralmente é feita por mulheres e crianças, e é o primeiro aprendizado de quem se inicia no ofício.

Alguns intérpretes e comentadores da obra de Espedito costumam chamar os padrões decorativos de suas peças de arabescos, em referência à já documentada influência moura nos trajes do vaqueiro nordestino. Espedito, contudo, diz não gostar da palavra, preferindo usar o termo “desenho”, que seria próprio da região.

Seus desenhos são criados a partir da combinação de três influências estéticas, de forma completamente única e original: as curvas e recortes do traje do vaqueiro; a estilização das curvas, as flores (de lis e de gibão) e a estrela de oito pontas do cangaço, uma subcultura do vaqueiro; e as cores e pompa dos ciganos. Os desenhos surgem a partir da transformação e combinação de curvas em “S”, que, quando unidas de forma espelhada, completam a forma de um coração, marca registrada de Espedito:

“Toda peça minha tem um coração coroado. Porque todos nós temos um coração. Mas só quem tem um coração coroado é o Espedito Seleiro. Às vezes eu faço um coração, não emendo muito assim uma perna com a outra, mas eu deixo um pouquinho separado só para dar o quebra-cabeça, certo? Que é para a pessoa pegar as ideias que existem e juntar uma coisa com a outra e formar o coração.” – Espedito Seleiro.

Ao unir diferentes expressões culturais nordestinas para criar peças contemporâneas que honram sua paisagem, Espedito Seleiro mantém viva – com um coração que bate – a civilização do couro, que tem nos ofícios do vaqueiro e seleiro sua maior manifestação.

Referências

DODT, Liana Cristina Vilar. Espedito Seleiro: Tradição e Ofício de um Artesão Cearense. 2016. 116 f. – Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Programa de Pós-graduação em Comunicação Social, Fortaleza (CE), 2016.

WALDECK, Guacira. Espedito Seleiro: Da Sela à Passarela. Catálogo de Exposição 175. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2012.

As citações de Espedito Seleiro foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 10 de maio de 2024.

 

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