Nen – AL

História de vida

Filho e bisneto de carpinteiros navais, Adeildo Gomes dos Santos (1972) nasceu em Maceió e recebeu o apelido de Nen para diferenciá-lo de seus onze irmãos. Desde os 9 anos, precisou trabalhar e, por não se adaptar ao corte de cana, passou a se dedicar inteiramente à marcenaria. Aos 17 anos, deixou a família e migrou para São Paulo em busca de novas oportunidades, onde trabalhou em uma fábrica de eletrodomésticos e de móveis, como marceneiro.

Voltou a Alagoas no ano 2000, carregando consigo o título de mestre marceneiro. Um dia, quando estava pegando caranguejo na praia, o fotógrafo Celso Brandão pediu para que Nen mudasse uma cama de um quarto para o outro em sua casa. Nen fez a mudança do móvel muito rapidamente, deixando Celso Brandão admirado. Ao descobrir que Nen era marceneiro e carpinteiro, contratou-o para restaurar obras de sua coleção de arte popular, em especial peças de Zé do Chale, Seu Fernando e Véio.

Nen também passou uma temporada de dois anos e meio no povoado da Ilha do Ferro – AL, a convite de Celso Brandão, restaurando sua casa. Ali, Nen conviveu diariamente com mestres e artistas que se dedicam à arte do entalhe. Em certo momento, mudou-se para o município de Barra de Santo Antônio por causa de questões familiares, sempre mantendo relações próximas com a Ilha do Ferro.

Por muitos anos, Nen dedicou-se a restaurar peças de arte popular, à marcenaria e à produção de algumas peças de mobiliário de autoria própria, que eram vendidas para turistas. Até que, em 2018, ano de virada em sua trajetória, criou sua primeira peça feita com madeira de canoa:

“Eu tava no rio Santo Antônio, na casa de um amigo meu. A gente foi comer berdigão. E aí eu olhei assim para uma frente de canoa e falei: ‘Rapaz, tu não me vende essa canoa para eu consertar e ir pescar?’. Ele disse: ‘Eita, rapaz, eu vendo’. Aí eu trouxe ela pra cá e joguei numa posição que deu uma poltrona. Eu disse: ‘Oxente, pera aí que esse negócio tá diferente’. E aí eu cortei e, quando botei os pés, fiz o assento, tratei e botei no Instagram. Foi sucesso, apareceram onze compradores.”

Em 2019, Celso Brandão produziu a exposição “Pepitas Populares – Coleção Celso Brandão”. Com o objetivo de lançar o trabalho de Nen para um público mais amplo, o artesão foi convidado a participar da mostra com 20 cadeiras, junto a grandes nomes da arte popular brasileira. Desde então, Nen participa de feiras do setor e exposições. Suas peças são vendidas principalmente para arquitetos e colecionadores.

É da produção artesanal que tira seu sustento e o de sua família. Carla, sua esposa, também é artesã e administra uma loja que possuem na principal rua da cidade para comercializar as peças. Já Jaíne, sua filha, atua em lojas colaborativas, além de administrar as redes sociais.

Obra e processo criativo

Nen produz peças de mobiliário, como mesas, cadeiras, bancos e poltronas. Suas peças revelam a junção de duas influências diferentes em sua trajetória: a carpintaria naval e a marcenaria, que traz de berço, e a estética do entalhe da Ilha do Ferro, que privilegia o uso de madeiras claras com formas orgânicas e retorcidas. Mas, diferentemente dos artistas da Ilha, que utilizam madeiras oriundas de matas, Nen trabalha com troncos mortos coletados no mangue durante as marés baixas e madeiras de canoas antigas.

As canoas são compradas diretamente dos pescadores em diferentes municípios de Alagoas. A partir da história de vida do canoeiro e das camadas de tinta que a canoa apresenta, é possível estimar sua idade. Algumas chegam a ter mais de 130 anos e foram o instrumento de trabalho para alimentar várias gerações de uma mesma família. Muitas vezes, são muito estimadas pelos pescadores como companheiras de uma vida inteira, intermediando sua relação com as correntezas dos rios e a imensidão do mar.

Confeccionada por carpinteiros em um único tronco de madeira, geralmente de jaqueira, pequi, amarelo, cedro ou fruta-pão, a canoa também é uma criação artesanal. Cada uma possui desenhos específicos, com curvas que revelam os conhecimentos técnicos e estéticos de seu criador. Ao criar suas peças, Nen aproveita justamente essa diversidade de formas, incorporando ao desenho original uma nova função. Assim, ao posicionar a proa ou a popa para baixo, o casco de uma canoa passa a ocupar a função de um espaldar, transformando-se em uma poltrona.

Atento à beleza e à riqueza que essas madeiras carregam, Nen não acrescenta novas cores. Prefere se dedicar a “descobri-las”, revelando as camadas de pintura com o auxílio de lixas. Por fim, as peças são imunizadas para evitar o ataque de cupins e brocas e recebem um selante e uma camada de cera para proteção.

Nen trabalha todos os dias da semana e conta com o auxílio de dois ajudantes. Mas ressalta que o ofício artesanal possui muitas etapas e seu ritmo próprio:

“Todo dia eu trabalho, mas não é todo dia que eu produzo. Só produz quando você está inspirado, aí pega uma peça e faz. Quando não está, você trabalha o dia todinho fazendo limpeza [nas madeiras], mas não faz nada. Quando eu tô inspirado naquela peça, eu faço em um dia.”

Indagado se tira folga no final de semana, responde humorado: “Rapaz, eu folgo a noite todinha”, revelando a importância que o fazer artesanal tem em sua vida.

As canoas e o patrimônio naval brasileiro

O Brasil é o país com maior diversidade de embarcações tradicionais, possuindo mais de 150 tipos de barcos já catalogados pelo Museu Nacional do Mar, localizado em São Francisco do Sul – SC. Os modos de construir embarcações, suas características físicas, ornamentações e formas de navegar compõem uma complexa rede de conhecimentos que conformam o patrimônio naval brasileiro, ainda pouco conhecido.

Utilizadas por séculos para navegar ao longo de toda a costa brasileira, mas também no interior do continente em rios e lagos, as embarcações são tradicionalmente construídas por carpinteiros navais e mestres canoeiros. Os conhecimentos são passados de forma oral de geração em geração, em estaleiros que se tornam cada vez mais raros. Com o declínio do interesse dos jovens e a dificuldade de se obter madeiras adequadas, que estão mais caras e difíceis de encontrar, esses conhecimentos correm o risco de desaparecer. Apesar da grande diversidade de técnicas construtivas e modelos, muito pouco sobre os diferentes processos foi pesquisado e documentado.

Entre as embarcações brasileiras, as canoas compõem uma quantidade expressiva. Esculpidas em um único tronco de madeira, são versáteis e se adaptam a diversas condições de navegação. Possuem características próprias de onde são produzidas e para qual função se destinam. Pequenas e mais alongadas costumam ser mais adequadas para a navegação costeira, já as maiores e com grande capacidade de carga são ideais para o alto-mar. Algumas possuem as bordas mais altas, como as canoas bordadas do sul do Brasil, específicas para navegar em áreas com mais ondulações. Podem ainda ter o acréscimo de velas e coberturas no convés.

O estado de Alagoas, que carrega as lagoas Manguaba e Mundaú em seu nome, possui uma grande diversidade de modelos de canoas. A canoa de tolda, utilizada no passado para o transporte de carga no baixo rio São Francisco, se tornou um símbolo das comunidades ribeirinhas que vivem à sua margem. Um exemplar, a Canoa de Tolda Luzitânia, foi tombado pelo IPHAN e enfrenta desafios financeiros para sua conservação. Há também as elegantes “canoas alagoanas”, como são chamadas as que possuem traços característicos encontrados no estado. Possuem desenho com linhas suaves, proa estreita com um arremate alargado na ponta e popa longa e alteada.

Referências

CRUS, Carla Ferreira (org.). A coleção barcos do Brasil. Florianópolis: IPHAN, 2019.

LIMA, André Luis de (org.). 1º Seminário do Patrimônio Naval Brasileiro. São Francisco do Sul: Museu Nacional do Mar, 2005.

As citações de Nen foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 24 de abril de 2024.

 

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