Povo Ashaninka do Rio Amônia – AC
História dos Ashaninka do Rio Amônia
Os Ashaninka, também previamente conhecidos como Kampa (nomenclatura de origem não-indígena), são um povo pertencente ao tronco linguístico Arawak sub-andino. Vivem em um vasto território na floresta amazônica, que se estende do Alto Juruá, no Acre, até outras localidades à leste dos Andes centrais, na Amazônia peruana. Contam com uma população estimada de cem mil indivíduos, sendo que a grande maioria está no Peru. Em território brasileiro, os Ashaninka habitam sete terra indígenas, todas situadas no Estado do Acre, e a maior parte se concentra na Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no município de Marechal Thaumaturgo.
A chegada dos Ashaninka na região do Alto Juruá é antiga, anterior à definição dos limites entre Brasil e Peru. As famílias ashaninka foram atraídas para esta região pelos seus lindos rios e praias e por sua abundância, bem como forma de escapar às consequências negativas do contato com os não-indígenas. A ocupação mais intensa desse território pelos Ashaninka acontece a partir da década de 1930, quando Samuel Piyãko muda-se para a região. Samuel teve muitos filhos e progressivamente construiu o principal grupo familiar do território. Seu filho, Antônio Piyãko, se tornou a liderança após seu falecimento, e hoje seus netos estão entre as maiores lideranças da comunidade.
Na década de 1980, no entanto, a exploração madeireira ganha escala, passando a ser a principal atividade econômica na região. A terra Kampa do Rio Amônia é rica em madeiras nobres, como o cedro e o mogno, o que motivou a invasão mecanizada para sua extração. A exploração madeireira trouxe consequências ambientais e culturais violentas, como doenças, contaminação dos rios e perda significativa da biodiversidade, diminuindo a caça e os peixes. Esse período é lembrado com muita tristeza e como um momento de extrema pobreza.
Em 1986, com o objetivo de sair da dependência econômica dos patrões madeireiros, os Ashaninka criaram uma cooperativa. A partir do final da década de 1980, a arte e o artesanato tornaram-se os principais produtos comercializados por ela, que foi formalizada em 2003 com o nome Ayõpare – Cooperativa Agroextrativista Ashaninka do Rio Amônia.
Com o agravamento das consequências da exploração madeireira, os Ashaninka passaram a documentar e denunciar as violências que vinham sofrendo com a ajuda de antropólogos e indigenistas e passaram a reivindicar a demarcação de seu território. Após anos de luta, a Terra Indígena Kampa do Rio Amônia foi demarcada em 1992 com uma área de 87.205 hectares. Para comemorar essa conquista, todos os anos os Ashaninka realizam em junho uma grande festa na comunidade.
A demarcação trouxe transformações para o modo de vida ashaninka. Se antes era possível circular por um grande território, com a delimitação de um espaço definido ficou evidente que seria necessário aprender a manejar os seus recursos naturais de outra forma para garantir o futuro de suas famílias.
Em diálogo com o mundo não-indígena, buscaram estratégias para viabilizar estratégias sustentáveis para sua comunidade preservar a floresta. Nesse movimento, a cooperativa passou a ter grande importância para a geração de renda, bem como a Associação Ashaninka do Rio Amônia – Apiwtxa, criada em 1991 e formalizada em 1993. Por meio da associação, os Ashaninka implementaram vários projetos com parceiros nacionais e internacionais, como a criação de sistemas agroflorestais, extrativismo de sementes, preservação de tracajás, estabelecimento de açudes, entre outros. Também criaram o Centro Yorenka Ãtame (Saberes da Floresta), onde realizam formações para jovens e adultos, indígenas ou não, relacionados à sua cultura e também à práticas sustentáveis. Cabe ressaltar, ainda, que os Ashaninka criaram, de forma pioneira na Amazônia, um plano de gestão territorial e ambiental indígena. O documento, disponibilizado em publicação bilíngue, apresenta os anseios e acordos coletivos da comunidade sobre o uso do território e seus recursos.
Com tantas inciativas voltadas para a promoção da sustentabilidade de seu território e das comunidades do entorno, os Ashaninka ganharam grande visibilidade política e se tornaram referência na luta ambiental. A associação Apiwtxa ganhou vários prêmios e suas lideranças são convidadas para dar palestras e participar de eventos internacionais sobre mudanças climáticas, desenvolvimento sustentável e a preservação da sociodiversidade da floresta amazônica. Alguns líderes, inclusive, chegaram ocupar cargos políticos nas esferas municipal, estadual e federal.
Artefatos ashaninka
Os Ashaninka possuem uma cultura material bastante diversificada e única. Produzem mais de setenta tipos de objetos que têm diversas funções utilitárias e decorativas, como vestimentas, bolsas, cestos, instrumentos musicais, adornos pessoais e outros objetos. Grandes admiradores do que é belo, produzem seus artefatos com muito esmero e senso estético. Alguns objetos podem ser feitos especificamente por homens, alguns somente por mulheres, e outros por pessoas dos dois gêneros.
Usam diferentes tipos de matérias-primas, como o algodão cultivado, tecidos industrializados, diversos tipos de fibras e sementes, cascas de árvores, madeira, ossos, couros e penas. Os Ashaninka do Rio Amônia coletam essas matérias-primas seguindo o plano de gestão territorial e ambiental, sendo esse cuidado essencial para garantir a preservação e a continuidade das espécies.
A produção artesanal é a principal fonte de renda das famílias que compõem a comunidade e as peças são produzidas respeitando o ritmo das tarefas diárias e o calendário de eventos da comunidade. A cooperativa Ayõpare compra as peças produzidas pelas famílias e fornece os produtos de interesse das famílias em troca, ficando responsável por fazer as vendas para os clientes:
“A gente diz que [o artesanto] é a primeira fonte de renda, porque a cooperativa foi uma das primeiras estratégias que a gente criou para poder sair da mão dos patrões. Então a gente criou a cooperativa para poder trazer os produtos lá de fora para a população que não está saindo daqui para ir a Marechal [Thaumaturgo], para não precisar ir para outro canto atrás de comprar algo para trazer. Então a gente tem como a principal fonte essa troca. A gente troca o artesanato pela sua necessidade, do que você está precisando ali na sua família”. – Dora Piyãko, presidente da Ayõpare – Cooperativa Agroextrativista Ashaninka do Rio Amônia
A venda do artesanato cumpre, assim, o papel de gerar renda para as famílias, possibilitando sua permanência no território. Além disso, no momento de produção artesanal acontecem trocas de conhecimentos entre jovens e adultos, mantendo as tradições e conhecimentos vivos, passados de geração em geração. Os artefatos Ashaninka não possuem apenas utilidade prática para atender as necessidades diárias. Esses objetos possuem significados culturais e simbólicos profundos, conectados à floresta, à espiritualidade, à ancestralidade, aos costumes e à construção de um futuro em que essas tradições são preservadas e respeitadas.
Entre tantos objetos, a exposição apresenta:
Kitharẽtsi e adereços pessoais masculinos
A kitharẽtsi, chamada de cusmas pelos não-indígenas, é o traje tradicional ashaninka. A kitharẽtsi masculina é tecida em teares tradicionais com algodão natural pelas mães, irmãs ou esposas, em um processo que leva vários meses. Possui uma costura central e duas laterais, com a gola em formato V. É feita com algodão cru e tingido com plantas, apresentando listras verticais formadas por pequenos padrões.
A bolsa (thato), confeccionada em tear manual, é utilizada para carregar objetos pessoais, como cachimbo, bastão de urucum, pente, linha, cera para flecha, entre outros.
O colar de muitas voltas (txoshiki) é um adorno exclusivamente masculino, utilizado na diagonal. Pode ser confeccionado com diferentes sementes, contas, penas e tathani, espécie de adorno feito com sementes e casca de castanha.
Kitharẽtsi feminina e kayēthawõtsi
A kitharẽtsi, chamada de cusmas pelos não-indígenas, é o traje tradicional ashaninka. A kitharẽtsi feminina é confeccionada com tecido de algodão industrializado ou natural, tingido com corantes naturais de plantas e ornamentado com grafismos na horizontal, pintados com o barro pitsithari. Possui costuras laterais com espaço para os braços e gola em formato canoa. Algumas túnicas podem ser decoradas com tathani nos ombros, ornamentos feitos com sementes que distraem as crianças quando são carregadas.
A kayẽthawõtsi é uma tipoia de algodão, tecida em tear tradicional. Exclusivamente feminina, possui diversos usos, podendo ser utilizada para carregar crianças de colo, objetos pessoais e alimentos, e para proteger do sol e do sereno da noite. Também ornamenta a mulher, em passeios ou no ritual do piyarẽtsi. Nessas ocasiões, usa-se tipoias enfeitadas com sementes e penas. Sua forma de usar também identifica se a mulher é casada ou não.
Tecidos
As mulheres ashaninka conhecem diversas plantas tintóreas, que produzem diferentes cores e tonalidades. As cores mais utilizadas para tingir são o vermelho, marrom, alaranjado, preto e verde. Para produzir as cores, cozinham folhas, cascas e outras partes de plantas como o murici, urucum, jenipapo, mogno, tanibuca, imbu, olho de boto, entre outras. O preto é obtido com a combinação de certas plantas com o barro pitsithari, coletado nas margens de rios, lagos e igarapés. Para adornar os tecidos com os grafismos, as mulheres pintam o tecido previamente tingido com o barro pitsithari, utilizando um pincel.
Poarẽtsi
Cachimbo entalhado em madeira com piteira original de osso de macaco, animal que faz parte da alimentação ashaninka. É utilizado por homens e mulheres para fumar tabaco, principalmente em momentos de concentração.
Para esta exposição, o osso de macaco das piteiras foi substituído por bambu.
Instrumentos musicais
As flautas são confeccionadas com tabocas, unidas com linha de algodão encerada com cera de abelha nativa para que não deslize. A com cinco tabocas, sõkari, pode possuir dois tamanhos com duas afinações diferentes e é utilizada apenas no ritual do Sokatatsi. Já a com mais tabocas, totama, pode ser tocada a qualquer hora do dia, geralmente músicas animadas acompanhadas por cantos.
Tocado pelas mulheres, o chocalho é feito com uma tira tecida em algodão e sementes de aguaí, que produzem um som semelhante ao da água corrente.
Tsiwotsi
Maleta trançada com fibra de cana-brava por homens e mulheres, é utilizada para guardar diferentes objetos, como algodão fiado, fusos, contas e sementes para a confecção de adornos.
Pothotsi
Bastão de pasta feita com sementes de urucum e óleo, é utilizada para embelezar o rosto com desenhos e grafismos com significados especiais para quem os porta.
Amathairẽtsi
Espécie de chapéu ou diadema utilizado pelos homens em dias especiais ou em visitas a parentes e outros eventos. É confeccionado com fibra de palmeira, fios de algodão e penas de arara. Possui importante significado espiritual, pois representa a luz que ilumina a cabeça dos homens, conectando-os ao conhecimento do sol que é repassado para a terra.
Para esta exposição, as penas de arara não foram incluídas.
Referências
Pimenta, J. O caminho da sustentabilidade entre os Ashaninka do rio Amônia – Alto Juruá (AC). In: Povos Indígenas: Projetos e Desenvolvimento II. Souza, C. N. I. de S. et al. Brasília: Paralelo 15; Rio de Janeiro: LACED, 2010.
Pimenta, José. Amor rebelde: História, casamento e política no Alto Juruá. Mana, Rio de Janeiro, v. 24, n. 2, p. 199-234, maio/ago. 2018.
Pinhanta, Maria Alexandrina da Silva. Kitharentsi: A arte da tecelagem das mulheres ashaninka. 2019. 126 f., il. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável) — Universidade de Brasília, 2019.