“Hoje a gente entende que a nossa cultura é rara, ela é única da nossa região, especificamente de Limpo Grande, porque, na grande maioria, são as mulheres daqui que fazem. Cada rede é uma obra de arte, considerando o modo como é feita.” – Jilaine Maria da Silva, presidente da Associação Tece Arte e artesã.
História da associação
Em Mato Grosso, mais precisamente nos municípios de Várzea Grande, Poconé e Santo Antônio do Leverger, existe uma das mais belas tradições de tecelagem do Brasil. As artesãs dessa região se especializaram na confecção de redes de dormir ricamente coloridas e ornamentadas, tecidas artesanalmente por meio de uma técnica singular que só é encontrada ali.
Infelizmente, os conhecimentos e a prática da tecelagem dessas redes estavam se perdendo, devido às dificuldades que as artesãs enfrentavam para a comercialização das peças com um preço justo. Com o objetivo de resgatar e fortalecer esse trabalho, a Associação das Redeiras de Limpo Grande – Tece Arte foi criada em novembro de 2021 na comunidade de Limpo Grande, localizada a 23 quilômetros do centro de Várzea Grande, município do qual faz parte.
“A Tece Arte foi criada com o objetivo de fazer o resgate da nossa cultura, que estava quase em extinção. Desde quando a gente resolveu criar a associação, muitas coisas começaram a melhorar. Hoje a gente faz parte da Rede Artesol, que é uma ONG que valoriza o nosso trabalho. Inclusive, tenho recebido muitas ligações de pessoas que já entram no nosso cadastro através do site para conhecer mais a nossa história. A gente também conquistou o selo Top 100 de Artesanato do Sebrae Nacional. Hoje a nossa arte é referência em nosso estado, e tudo isso tem impactado diretamente na vida das redeiras de nossa comunidade e na própria comunidade.” – Jilaine Maria da Silva.
Antes da criação da associação, as artesãs chegavam a demorar um ano para vender uma única rede. Juntas, vendiam no máximo dez redes por ano. Em 2023, com a associação, venderam oitenta. Como resultado da organização coletiva das artesãs, atualmente Limpo Grande é a principal localidade produtora das redes de dormir, pois essa tradição praticamente se perdeu nos outros municípios, apesar de ainda existirem artesãs detentoras desse saber nessas localidades.
Cerca de 50 artesãs da comunidade integram a associação e se dedicam a produzir redes de dormir e outros produtos. A maioria são donas de casa, com mais de 40 anos, e têm a produção artesanal como a única fonte de renda própria.
A associação recentemente conquistou uma sede própria, que funciona como um centro cultural. No local, comercializam produtos e recebem jornalistas, estudantes, artesãos e turistas que querem conhecer como o trabalho é feito.
Uma das principais preocupações das artesãs é a continuidade do repasse da técnica. Cada vez menos as jovens têm interesse em aprender o ofício, pois preferem exercer outras profissões que possuem um retorno financeiro maior. A associação exerce, assim, o importante papel de promover a valorização da técnica como um elemento cultural identitário e uma fonte de renda com remuneração justa para as artesãs.
Obra e processo criativo
Por muito tempo, as redes produzidas nessa região ficaram conhecidas como “redes cuiabanas”, pois o principal local de comercialização era em Cuiabá. Para demarcar a origem de suas redes e fortalecer suas raízes culturais, as artesãs de Limpo Grande passaram a chamá-las de “redes várzea-grandenses”.
De acordo com a historiografia, a rede de dormir foi inserida na região de Mato Grosso pelos bandeirantes paulistas que adentravam cada vez mais o interior do território que viria a ser o Brasil em busca de riquezas minerais e aprisionamento de indígenas. No entanto, de acordo com a memória transmitida oralmente na região, o modo de fazer a rede de dormir é uma herança dos indígenas conhecidos como Guanás, que migraram para a margem direita do rio Cuiabá na primeira metade do século XIX. Por isso, esse modo de fazer é tradicionalmente localizado nos territórios dos municípios que integram o Vale do Rio Cuiabá. Essa origem é justificada pela singularidade da tecelagem, realizada em tear vertical de baixo para cima, diferentemente dos teares portugueses posicionados na horizontal.
A tecelagem das redes de dormir é um trabalho tradicionalmente feminino, passado de geração em geração, geralmente de mãe para filha. Algumas artesãs aprendem a técnica com outras mulheres da família, como a irmã, uma tia, sogra e até amigas. Geralmente, o processo de aprendizagem começa no cotidiano, enquanto a criança observa a mãe trabalhar e às vezes auxilia no novelamento, processo em que dois cabos de linha de algodão são novelados juntos, pois as redes são tecidas com linhas duplas. As meninas passam a tecer, de fato, por volta dos 12 anos de idade.
As mulheres trabalham em suas casas, geralmente em horários encaixados entre as atividades domésticas. Algumas artesãs trabalham em dupla, uma do lado da outra, tecendo a mesma rede. Apesar de ser um trabalho tradicionalmente feminino, alguns homens também participam de certas etapas do trabalho, principalmente na confecção dos novelos e da varanda.
A confecção de uma rede tem várias etapas e leva de dois a três meses para ser concluída, dependendo da experiência da redeira, do tempo dedicado ao trabalho e da complexidade dos desenhos do bordado. É, em essência, um trabalho bastante demorado. Para se ter uma referência, uma rede com desenhos detalhados leva dois meses e meio para ficar pronta, com o trabalho de tecelagem compartilhado entre duas redeiras experientes, em jornadas de trabalho de 8 horas, de segunda a sexta.
A primeira etapa do trabalho consiste em enovelar os fios, que é o processo de juntar duas linhas de algodão para formar um fio com dois cabos. Com as linhas noveladas, começa-se a urdidura, envolvendo as linhas duplas no braço inferior e superior do tear. São utilizados 15 novelos de linhas duplas para o fundo de uma rede. Após a urdidura, as artesãs inserem dois liços feitos com linhas brancas, que têm a função de separar as linhas facilitando a separação das linhas. São dois liços porque um é utilizado na tecelagem do fundo, enquanto o outro é específico para o bordado.
Inicia-se, então, o processo de tecelagem, que é realizado de baixo para cima pela artesã, sentada no chão. Os desenhos da rede, chamados de bordados, são feitos ao mesmo tempo em que a rede é tecida com uma técnica conhecida como lavrado. Essa forma única de tecer resulta em uma rede sem avesso, pois os desenhos podem ser vistos dos dois lados do tecido.
Para fazer os bordados, as artesãs utilizam mostras, gráficos de desenhos formados por quadrados, semelhantes aos de bordado ponto cruz. A cada número de carreiras tecidas, as artesãs batem nas linhas com a batedeira, uma madeira fina e pesada que tem a função de assentar as linhas e deixar a trama bem fechada. Conforme tece, a artesã move o tecido concluído para a parte de trás do tear, mantendo a área de trabalho sempre na mesma altura. Após a conclusão da tecelagem, a rede é retirada do tear, trabalho pesado que é dividido entre duas pessoas, e passa-se para a outra etapa. Com as linhas da própria rede, tece-se o cadarcinho, tira de tecido que une os cabos trançados da rede formando o punho.
Por fim, pode-se costurar a varanda, que é confeccionada à parte com outra técnica, semelhante ao bordado filé. As artesãs confeccionam uma malha quadriculada parecida com uma rede de pesca. Essa malha, também chamada de puçá, é esticada em um bastidor retangular. É então bordada com uma grande agulha por meio do preenchimento dos quadrados, formando desenhos que mantêm a temática dos bordados lavrados da rede.
Antigamente, as redes possuíam cores e desenhos mais simples, como listras. Eram produzidas pelas artesãs desde o plantio do algodão, que descaroçavam as plumas, batiam e fiavam, para, por fim, iniciar a tecelagem. O uso de linhas de algodão industrializadas permitiu uma maior expressão estética, com uma complexificação gradual dos desenhos seguindo tendências do mercado.
Até muito recentemente, as redes eram decoradas principalmente com flores, e nas bordas recebiam padrões geométricos de inspiração grega. Com o crescimento do turismo e a influência de revendedores de Cuiabá, as redeiras começaram a incluir no repertório principalmente desenhos de animais da região em que vivem, uma área de encontro entre os biomas do Cerrado, Floresta Amazônica e Pantanal. Assim, os principais animais retratados são as araras, tuiuiús, onças e peixes. As flores ainda se mantêm como o principal elemento de decoração e podem aparecer combinadas aos animais ou outros criados pela artesã.
No passado, as cores das redes tendiam a ser limitadas ao branco, preto e outras obtidas por meio do tingimento natural com cascas de árvores da região. Atualmente, as linhas industrializadas permitem o uso de cores vibrantes e uma paleta bem variada. No entanto, predominam cores fortes e primárias, como o azul, o vermelho, o amarelo e o verde.
As redes já foram um importante símbolo de prestígio e status nas comunidades onde eram produzidas. Costumava-se encomendar de redeiras habilidosas redes brancas ou pretas para serem presentadas a pessoas importantes e figuras públicas. Algumas redes eram, inclusive, tecidas com monogramas dos presenteados.
Atualmente, as redes expressam a grande habilidade técnica, a criatividade e a identidade cultural das redeiras, tornando-se um símbolo e patrimônio imaterial da comunidade de Limpo Grande e do Mato Grosso.
Referências
IGNÁCIO, Elizete; OLIVEIRA, Lucas Albuquerque de; RODRIGUES, Valéria Nogueira. Redes de dormir de Limpo Grande. Catálogo de exposição. 2ª ed. Rio de Janeiro: IPHAN, CNFCP, 2011.
SOUZA, Laurenice Lopes de; BITTENCOURT, Nadir F. B.; ARRUDA, Zuleika Alves de. Cartografia dos Lugares de Resistência dos Modos de Fazer da Rede de Dormir: Redeiras de Várzea Grande (MT) – Brasil. In: JORGE, Vitor Oliveira (coord.). Modos de Fazer/Ways of Making. Porto: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, 2020. pp. 153-165.
As citações de Jilaine Maria da Silva foram retiradas de uma entrevista realizada por Isabel Franke no dia 9 de maio de 2024.