Artistas Mehinaku e Waujas – Alto Xingu – MT

Parque Indígena do Xingu

Localizado na região nordeste do estado do Mato Grosso, possui 2.642.003 hectares e abrange uma área de transição entre o bioma amazônico e o Cerrado. A presença de grandes rios é característica marcante que aparece em seu próprio nome, pois Xingu significa água limpa, água boa. Seus principais rios são: Von den Stein, Jatobá, Ronuro, Batovi, Kurisevo e Kuluene, sendo este o principal formador do rio Xingu, ao se encontrar com o Batovi-Ronuro.

A demarcação administrativa do Parque foi homologada em 1961 pelo então presidente Jânio Quadros, com área total com um quarto do que foi originalmente proposto. O título, antes Parque Nacional do Xingu, deve-se a dupla intenção da demarcação desse território: a preservação ambiental e de sua socio-diversidade. Com a criação da FUNAI, em 1967, o Parque passa a ter como principal objetivo a proteção das populações indígenas que o habitam.

O Parque é dividido em Alto, Baixo e Médio Xingu, sendo que o Alto se localiza ao sul, enquanto o Baixo ao Norte. É habitado por 16 etnias: Aweti, Ikpeng, Kaiabi, Kalapalo, Kamaiurá, Kĩsêdjê, Kuikuro, Matipu, Mehinaku, Nahukuá, Naruvotu, Wauja, Tapayuna, Trumai, Yudja, Yawalapiti.

Com exceção dos Ikpeng, Kaiabi, Kĩsêdjê, Tapayuna e Yudja, os povos do Xingu formam um complexo cultural que é caracterizado pelas trocas culturais, permeando tradicionalmente as regras de casamento, rituais interaldeias, trocas econômicas entre outras. Com a intensificação da luta por direitos dos povos indígenas, junta-se a essas relações a articulação política frente à sociedade dos não-indígenas.

Dentre toda a produção de arte indígena do Brasil, o Parque do Xingu concentra os mais habilidosos artesãos em diferentes tipologias. Para muitos colecionadores, as peças produzidas por esses povos são as mais bem acabadas e elaboradas e, por isso, se destacam no mercado da arte e do artesanato indígena brasileiro, alcançando também reconhecimento internacional.

Wauja

Também descritos como Waurá pelos não indígenas por uma confusão de pronúncia, sua autodenominação é Wauja. Falantes de uma língua Arawak, compartilham semelhanças culturais e linguísticas com os Mehinaku e habitam a região do Alto Xingu. Possuem uma população de 670 indivíduos, divididos em oito aldeias. As peças desta exposição foram produzidas por artistas da maior aldeia, Piyulaga, que conta com aproximadamente 352 indivíduos e se localiza no município de Gaúcha do Norte, Mato Grosso. Piyulaga significa “lugar ou acampamento para pescar” e também nomeia uma lagoa próxima da aldeia. As aldeias Wauja são tradicionalmente circulares com uma casa das flautas ao centro, espaço majoritariamente masculino dedicado aos instrumentos musicais sagrados.

Os Wauja são bastante conhecidos por sua produção cerâmica, pois são os únicos povos do Xingu a produzi-la. Sua estética é inconfundível e única no mundo. Atualmente, atendem especialmente o mercado de lojas de arte, artesanato e produtos indígenas, mas também são procurados por outros povos do complexo xinguano, que trocam diferentes tipos de artefatos por panelas de diversos tamanhos.  São, assim, os grandes fornecedores de artefatos cerâmicos para todo o Xingu.

Pesquisas antropológicas indicam que a cerâmica e o seu fazer constituem a identidade dos Wauja. Tanto homens como mulheres aprendem a cerâmica, pois a panela é a metáfora por excelência do “modo de ser” Wauja: o aprendizado da modelagem ensina os Wauja a serem Wauja. No entanto, mesmo que os saberes sejam difundidos, registra-se que há indivíduos que se destacam na produção, sendo reconhecidos como exímios artesãos: alguns na modelagem, outros na pintura e alguns poucos em todas as etapas do processo.

Há uma explicação mitológica para o domínio dos Wauja da cerâmica. Contam que, há muito tempo, uma grande cobra-canoa apareceu para os Wauja, chamada Kamalu Hai. Essa cobra-canoa trazia em seu dorso todos os artefatos cerâmicos, que cantavam. Nesse encontro, Kamalu Hai ensinou os Wauja a como produzir a cerâmica e, quando foi embora, defecou grandes montes de argila nas margens do rio Batovi, para que os Wauja pudessem produzi-la. A percepção de que as panelas cantam não é descolada de elementos empíricos, pois ao bater no fundo da panela, o som emitido demonstra a qualidade técnica da manufatura.

 A cerâmica Wauja é considerada o conjunto mais complexo de objetos do Xingu. As peças variam de pequenos potinhos a grandes panelas com cerca de 110 cm de diâmetro. As peças cerâmicas têm várias funções, são principalmente associadas ao preparo de alimentos e ao armazenamento de substâncias. Mas também existem peças sem função “prática”, criadas para uma apreciação estética. Há ainda as peças cerâmicas que materializam as visões divinatórias que os xamãs têm em seus sonhos.

No modo de fazer cerâmica dos Wauja, o barro é coletado no leito do rio Batovi por meio de mergulhos e é transportado de canoa. Junto ao barro, misturam uma espécie de esponja lacustre chamada cauxi, que depois de seca ao sol, é queimada e peneirada. O cauxi é chamado pelos wauja de akukutai e é coletado nas margens dos rios, pois se forma nos troncos e raízes da vegetação. Depois de queimado, passa a ser chamado de akukupe. A proporção correta de argila e akukupe determina a boa qualidade da argila a ser modelada. O cauxi, como antiplástico, tem a função de dar resistência à cerâmica.

Os potes de cerâmica começam a ser modelados pelo fundo, formando uma placa de argila do tamanho do diâmetro desejado. Para subir as laterais, adiciona-se pedaços de argila sucessivamente até completar a volta e atingir a altura desejada. Por fim, modela-se a borda, que pode ser extrovertida ou não. Depois de modeladas, as peças secam ao sol e passam por dezenas de raspagens até chegar à espessura desejada. Esse processo era feito tradicionalmente com a concha de um molusco bivalve, mas atualmente utensílios como facas e colheres têm sido utilizados. Por fim, são lixadas e polidas com uma pedrinha.

A queima é realizada ao ar livre em uma estrutura cônica feita de cascas de árvore. Depois de queimadas, as peças são pintadas. Tradicionalmente são utilizadas 4 técnicas de pintura:

Yuri: feita com fuligem e aglutinante vegetal, cor preta.

Mãuatã: retirada da casca macerada de uma árvore, cor preta. É utilizada principalmente para enegrecer o interior das panelas e bijuzeiras.

Topepe: Pigmento mineral avermelhado encontrado nas lagoas e rios da região.

Yuku: Produzido a partir do cozimento das sementes do urucum.

Legenda da foto
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Tipos de artesanato

Panela grande e pote pequeno de anestesia

Raras, essas panelas são usadas somente quando há o ritual Pohoká, em que os rapazes, escolhidos para serem futuros caciques de suas comunidades, recebem a furação de orelhas. O ritual é realizado, em média, a cada 15 anos, por isso é um momento histórico. No ritual, o jovem dança a noite inteira com os cantores, recebendo os anestésicos armazenados no pote pequeno para ter a orelha perfurada ao amanhecer.

A panela grande armazena as resinas utilizadas na pintura corporal do jovem iniciado. A peça apresentada nesta exposição é muito antiga e foi completamente restaurada, trazendo de volta seu esplendor. Suas rachaduras produzidas pelo tempo guardam a história de jovens meninos, escolhidos para o importante papel de liderarem as suas aldeias.

Pote de água 

Recipiente utilizado para armazenar água, simboliza o momento mítico em que a água foi espalhada pelo mundo. Conta o mito que um demiurgo foi até buscar a água que ficava armazenada em um pote. O pote foi flechado e “explodiu”, espalhando água por todo o mundo e criando os rios.

Panela de caldo

Chamada de kamalupo, é utilizada para cozinhar o caldo de mandioca, alimento tradicional preparado pelas mulheres.

Panela de peixe

Com desenhos zoomórficos, a panela é utilizada para o preparo dos peixes consumidos em ritual, por isso é diferente das utilizadas nas casas. É levada ao centro da aldeia para que o alimento seja consumido de forma compartilhada.

Bijuzeira

Chamado de héjé, é um dos objetos mais apreciados pelos Wauja e que ainda resiste às substituições por produtos industrializados. Ocupa lugar de destaque na casa e é essencial para preparar o beiju, base da alimentação.]

Onça

Escultura criada pela inovação criativa da autora a partir do contato com o mercado de arte e artesanato indígena. A onça é considerada a dona das florestas pelos Wauja.

‍‍Par de máscaras Kuwahãhalu

Feita em madeira e franja de palha de buriti, as máscaras são vestidas pelo espírito Kuwahãhalu, que habita a natureza, a floresta e as águas. É produzida principalmente para uso em ritual de cura, para melhorar a saúde de um doente. Depois de se consultar com o pajé, que diz qual espírito está lhe fazendo mal, o doente deve encomendar a máscara. A família do paciente deve alimentar quem faz a máscara para garantir que o espírito não fique bravo e adoeça mais pessoas. Depois de pronta, a máscara é utilizada em um ritual. Ela é amarrada na cabeça e segurada com as mãos. Ao final, com a melhora do paciente, a máscara vai para a casa do doente para ser destruída. Depois de realizar o ritual, o espírito que causava mal transforma-se em um protetor. O ritual, assim, funciona como uma espécie de “vacina”. 

Mehinaku

Os Mehinaku possuem uma população entre 400 e 500 indivíduos, divididos em cinco aldeias situadas nas margens dos rios Kurisevo, Tuaturi e Kuluene, na região do Alto Xingu, do município de Gaúcha do Norte – MT. São falantes de uma língua da família Arawak e guardam muitas semelhanças linguísticas e culturais com os Wauja. As obras apresentadas nesta exposição foram confeccionadas por artistas Mehinaku da aldeia Kaupüna. Criada em 2014, tem cerca de 68 habitantes.

Suas aldeias são circulares, formadas por ocas tradicionais feitas de madeiras e palhas de sapé e buriti. Divididas em metades, no centro localiza-se a Casa dos Homens, um importante ponto de encontro. A organização da aldeia materializa, espacialmente, uma arquitetura do céu: cada elemento é disposto de forma a interagir com a posição do sol em determinados horários do dia. Alimentam-se, tradicional e principalmente, de peixe, beiju de mandioca e caça.

O mundo dos Mehinaku é povoado por espíritos, chamados de apapayẽi, que possuem o poder de interagir com os humanos. Por isso, os Mehinaku seguem uma série de regras e rituais que tem o objetivo de estabelecer negociações com esses seres.

No campo das artes e da produção artesanal, os Mehinaku têm se destacado cada vez mais pela produção de bancos, principalmente zoomórficos, que chamam de xepí, uma atividade majoritariamente masculina. Já as mulheres se dedicam a um sofisticado trançado em fibra de buriti e linha de algodão, com belíssimos grafismos e desenhos. Com o trançado, confeccionam principalmente cestos, esteiras e redes.

Legenda da foto
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Tipos de artesanato

Casal de máscaras Atuxuá – cobra grande (uwitxumã)

As máscaras são utilizadas em rituais sagrados de cura de doenças. Tradicionalmente têm grandes dimensões, sempre feitas aos pares – masculino e feminino, com palha e fibra de buriti e linha de algodão. A busca e preparação inicial do material é feito pelas mulheres, mas a confecção das máscaras é realizada pelos homens na Casa dos Homens. A máscara é vestida com outros objetos: um apito (flauta), uma vara e a saia de fibra de buriti.

Para confeccionar a máscara, os homens se reúnem para programar a produção e na sequência buscam e colhem a palha do buriti no buritizal.  Antes disso, o dono do ritual vai pescar os peixe e tracajá para alimentar os responsáveis por sua criação ao longo da semana de confecção. Assim, alimenta-se o espírito para que ele não faça mal às pessoas. Depois, busca-se varas de madeira pindaíba, utilizada para fazer o círculo que estrutura a máscara. A vara é queimada para fazer o círculo e deixada no sol para secar. Enquanto esse processo é feito, as mulheres preparam as palhas verdes de buriti e as colocam no sol para secarem. Os homens participam desse trabalho para ajudá-las. Durante a confecção, o dono da festa fornece alimentos para as pessoas que representam os espíritos, como peixes assados, pirão de peixe acompanhado com beiju, e mingau de pequi, uma bebida feita de massa de pequi. Um alimento específico que mais agrada os espíritos é a sopa de pimenta com sal natural obtido da planta aquática conhecida como aguapé.  Os alimentos são consumidos coletivamente e repartidos para que os responsáveis possam levar para suas famílias.

Os grafismos são pintados com tintas naturais, como vermelho feito de urucum, e o preto, obtido da resina de uma árvore bem cheirosa que é exclusiva de uso do espírito que vive na margem do rio ou da lagoa.

O Atuxuá é o espírito do jatobá, do redemoinho e dos ventos. A árvore jatobá é vista como um abrigo do espírito Atuxuá, pois é alta, grossa e resistente.  É uma máscara líder de outras máscaras que tem o poder de adoecer as pessoas. Só o pajé pode ver esse espírito, que assume a forma de onça, cobra, peixe ou outro animal. Ao identificar qual espírito está lhe fazendo mal, o doente decide realizar um ritual, que acontece em uma época determinada, entre maio e junho. O ritual dura vários dias, no qual os homens cantam e dançam para agradar os espíritos. O dono da festa que ficou doente, deve alimentar e cuidar das pessoas que estão confeccionando as máscaras e organizando a festa com beiju, mingau, peixe. Ao alimentar as pessoas, alimenta-se o espírito para que não as deixem doentes.

Quando as máscaras ficam prontas e pintadas, os responsáveis decidem celebrar o ritual. Os cantos dos homens começam no começo da noite e vão até madrugada para alegrar os espíritos.

Na cerimônia do ritual somente os homens responsáveis vestem as máscaras amarradas com as saias de palhas para ninguém perceber quem está nela. Assim saem da casa dos homens usando uma flautinha como apito e vão na direção da casa do dono da festa. No local, a dona da festa faz uma cerimônia em forma de conselho para o espírito não causar mais problemas de saúde. Após a cerimônia, o dono fornece os alimentos em boa quantidade para agradar os espíritos.

Como retribuição aos cuidados recebidos, os responsáveis pela confecção das máscaras dão ao dono da festa objetos valiosos, como colares de caramujo, colares de miçangas, cintos de caramujo, caçarolas, caldeirão e flechas. Quando a máscara é vestida por um homem, ela sai para brincar com as mulheres que estão no rio ou na roça. Fazendo troça, a máscara provoca as mulheres, dizendo que derrubará a panela ou a bacia da cabeça das mulheres. A máscara permanece por um ano na casa central da comunidade e, durante esse período, ela tem o poder de cuidar do dono que, como contrapartida, cuida das pessoas que são responsáveis pelo ritual. Terminado esse período, o dono escolhe o momento de encerrar o ritual. Vai pescar, faz ritual de dança e canto e leva a máscara para ser queimada no mato, onde pede para o espírito não fazer mais mal às pessoas.

Canoa de madeira copaíba

A canoa é confeccionada pelos homens e é considerada um objeto precioso, pois é com ela que se busca alimento, ervas medicinais e outras provisões necessárias. Pode ter vários tamanhos e é muito estimada para a pesca, pois como é silenciosa, não espanta os peixes e outros animais. No cotidiano, é utilizada com remos que não recebem pinturas. Existem poucos tipos de madeiras apropriadas para confeccionar canoas. Essas madeiras tem uma alta durabilidade e não racham facilmente.

‍‍Banco canoa

Esse tipo de banco é conhecido como redondo e teve como inspiração a canoa. Seu design é uma criação contemporânea do artista. Esculpido em madeira de piranheira, teve como inspiração a canoa e recebeu os grafismos do peixe pacuzinho. A tinta utilizada é obtida por meio da mistura da resina da árvore engar com pó de carvão, para a cor preta. Essa tinta é utilizada para pintar bancos e outros objetos artísticos. O banco é usado no cotidiano da aldeia e é comercializado, como uma forma de gerar renda para os artistas.

Esteiras

São feitas de “espinho” de buriti, como chamam as varetas do broto da folha do buriti, linha de algodão colorida e barbante. A vareta é um subproduto da extração da palha do buriti, utilizada para confeccionar outros objetos, como máscaras e saias. A confecção das esteiras é realizada pelas mulheres, que criam de acordo com a sua criatividade.

São utilizadas em diferentes atividades do dia a dia: algumas servem para espremer a massa de mandioca, outras com tramas bem fechadas e com grafismos servem para guardar alimentos. As esteiras muito usadas servem para guardar plumagens e outras são usadas só para fazer farinha. Existe uma esteira específica do pajé, com a trama mais fechada, usada para guardar objetos sagrados. Também utilizam esteiras para proteger o rosto dos mortos no enterro.

A esteira também faz parte das relações de hierarquia da aldeia. Quando a neta do cacique sai da reclusão, se for escolhida como cacica e tiver o papel de liderar as mulheres futuramente, corta-se sua franja em cima de uma esteira para que seus cabelos não se percam e sejam usados em feitiçaria.

Tradicionalmente, as esteiras são adornadas com os grafismos Mehinaku de diversas representações dos seres. Nesta exposição, receberam desenhos de animais ao estilo não-indígena, tendo como referência os bancos entalhados em forma de animais.

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