Mestre Cornélio – PI

História de vida

José Cornélio de Abreu (1956) nasceu em Campo Maior – PI. Tinha o sonho de ser jogador de futebol, esteve em São José dos Campos, em São Paulo, “quando tinha dente de leite” pleiteando ser jogador no Portuguesa. Como seu pai queria que ele estudasse, o levou de volta pra Piauí.

Quando tinha por volta dos 13 anos, sua família mudou-se para Teresina. Cornélio trabalhou desde cedo para ajudar a complementar a renda da família. Entre 12 e 15 anos, fazia cadeiras de ferro em serralheria, além de ajudar o pai que era carpinteiro e marceneiro, fazendo portas, janelas e tetos de madeira.

De família católica, frequentava a igreja do bairro, no Parque Piauí. Quando terminaram de construir a capela, o padre italiano pediu para que Cornélio fizesse a imagem de Cristo da igreja. Para ajudá-lo na empreitada, o padre reuniu um artista cearense que havia chegado à cidade. Era Carlos B., que estava doente e precisava de trabalho.

Acharam um galho de cajueiro deteriorado  e usaram essa madeira para fazer o Cristo, que ficou com um braço torto devido às características da própria madeira. O padre gostou mesmo assim, dizendo que ele ficou expressivo pois foi assim que Cristo desceu da cruz. Nessa época Cornélio tinha por volta dos 15 anos.

Após esse episódio, Carlos B. chamou Cornélio para trabalhar com ele, já que estava com a saúde muito debilitada. Era por volta de 1973 e Cornélio não se animou muito com a ideia, pois achava a profissão difícil no Piauí. Mesmo assim, ajudou Carlos B. a fazer uma Pietá na casa de um cliente, que ficou contente e reconheceu o talento de Cornélio.

Aos poucos foi pegando gosto pelo trabalho com a madeira, mas enfrentava a resistência do pai dizia que Cornélio precisava largar o trabalho e deveria estudar. Seu pai dizia que Piauí era muito pequeno e não tinha espaço para esse trabalho artístico. Em momento de revolta, ficou alguns dias sem trabalhar com Carlos B., que logo contou para o padre. Determinado a intervir na situação, o padre foi até a casa de Cornélio e pediu para ele continuar com o trabalho na madeira, porque um dia seu pai iria falecer e Cornélio precisaria ter seu próprio caminho e sustento. Para persuadi-lo, o padre disse que um dia Cornélio ficaria tão famoso que conheceria seu país, a Itália, através de sua arte.

Nessa época, Carlos B. tramou um plano para estimular Cornélio a não desistir. Pediu para o amigo Tarcísio Prado, que gostava de arte, para comprar as peças produzidas por Cornélio. Tarcísio foi comprando a produção e dizendo para Cornélio que ele seria “o maior artista deste país”, o que foi o convencendo a continuar, mesmo sem saber que tudo era armado.

Um dia, andando perto de casa, encontrou um galho curvo de flamboiã e levou pra casa. Entalhou uma cabeça de jumento que lembrava uma carranca e levou a peça para o centro de artesanato para expor. A obra caiu no gosto de uma cliente importante, que fez a peça chegar aos olhos da esposa do então governador. Cornélio foi então convidado a participar de eventos promovidos pela política local dedicada ao artesanato, vendia suas peças no centro de artesanato e participava de feiras. Foi convidado a palestrar na feira de Parnaíba, com o objetivo de estimular os jovens artesãos da região. Novamente, viveu outra armação criada para estimulá-lo a continuar seu trabalho: a diretora do centro de artesanato havia comprado, escondido, todas as peças de Cornélio na feira.

Em 1974, o centro de artesanato realizou um concurso de presépios. Cornélio teve como concorrentes grandes escultores, como mestre Dezinho e Expedito. Ficou em segundo lugar, para sua grande surpresa. Um dos jurados disse a Cornélio que sua obra se destacou pela criatividade. Um presépio um pouco esquisito, porque tinha entre os personagens uma cobra. O jurado indagou a Cornélio o motivo da presença do animal, que respondeu: “Pelo que eu sei, deus e jesus abranjou todas as pessoas e animais, porque não a cobra?”

Cornélio participou de vários salões, exposições, concursos, e ganhou vários prêmios. Foi convidado para representar o Brasil na mostra campeonária do mundo em Padova, na Itália. Nessa viagem, passou por Verona, a cidade do padre que interviu na sua trajetória artística. Para Cornélio, a fala do que ouviu do padre, quando tinha seus 15 anos, foi profética.

Com o falecimento de mestre Dezinho e mestre Expedito, Cornélio é o mais antigo artesão vivo da tradição de santeiros do Piauí.

Obra e processo criativo

Mestre Cornélio é reconhecido por seguir a escola de escultores santeiros iniciada por Mestre Dezinho, mas é marcada por uma identidade e estilo próprio. A temática é principalmente católica, com imagens de santos, anjos e presépios. As imagens geralmente possuem uma postura hierática, as vestes são retas, mas recebem adornos em alto relevo, como folhas, flores e até temas regionais, como as palmeiras de carnaúba e outros elementos da cultura da região. Além dos santos, esculpe totens altos, com riqueza de detalhes que remetem à outras culturas, como a andina e indígena da América do Norte. Também passou a produzir esculturas com temas profanos, diversificando sua produção.

Suas peças são produzidas em parceria com seu filho, Leonardo Leal de Abreu, em um ateliê onde trabalham juntos. A madeira, geralmente cedro, é comprada e trazida de outros estados. Esculpe suas peças sem fazer nenhum esboço, utilizando ferramentas manuais. As esculturas não recebem tintura, apenas um acabamento em cera para preservar a madeira. 

Arte santeira de Piauí

A arte santeira do Piauí remonta ao processo de colonização do estado, mas ganha especial proeminência nas décadas de 1950 a 1970, quando o estilo que é reconhecido hoje começa a tomar forma. As cidades de Teresina, José de Freitas, Campo Maior, Pedro II e Parnaíba são as localidades que concentram mais mestres e aprendizes do ofício da arte santeira do estado.

Fala-se que, na região, há gerações de santeiros: a primeira iniciada com Mestre Dezinho (José Alves de Oliveira), que nasceu em Valença em 1916 e mudou-se para Teresina com 45 anos. Dezinho trabalhou como marceneiro e carpinteiro fazendo móveis, além de confeccionar ex-votos para fiéis. Depois de trabalhar por muitos anos como segurança em uma praça, um padre o chamou para esculpir o cristo e a imagem de Nossa Senhora de Lourdes, padroeira da Igreja. Até então, mestre Dezinho não havia feito esculturas de corpo inteiro, mas esse foi o pontapé para o começo de uma tradição na região.

Assim como Dezinho, outros artesãos santeiros também são oriundos de um contexto agrário. Mudaram-se para a capital do estado e outros municípios do seu entorno em busca de novas oportunidades de trabalho devido à decadência das atividades extrativistas, ligadas principalmente à carnaúba e outras palmeiras, e à agricultura. Quase sempre, esses santeiros, também tinham alguma habilidade em trabalhos manuais, atuando como carpinteiros, marceneiros ou sapateiros, o que os tornavam procurados pela população para a compra de ex-votos, uma prática do catolicismo popular bastante difundida e estimulada pela Igreja no Piauí. Essa relação de proximidade entre a produção de ex-votos com outras atividades artesanais contribuiu para a formação estética da arte santeira do Piauí. Mestre Dezinho inclusive chegou a afirmar que usava os mesmos adornos dos móveis, aqueles “apliques” esculpidos em alto relevo de folhas e flores, para decorar seus santos. Da mesma forma, a ausência de pintura e os traços estilizados, ainda que ricos em detalhes, remetem à economia das formas dos ex-votos.

Essa primeira geração foi formada a partir de um cruzamento de contextos e estímulos promovidos pela Igreja católica – como vemos na história de Dezinho e Cornélio, que começaram esculpindo imagens para uma igreja – e também pelo próprio estado, por meio de políticas de desenvolvimento voltadas ao artesanato. Hoje conta-se pelo menos 4 gerações de artesãos, que foram se formando a partir do interesse de pessoas próximas aos mestres e até de interessados que possuíam pouca ligação com esse modo de fazer. Atualmente, vários artistas já são reconhecidos, como mestre Kim, Dim, Paquinha, Costinha entre outros.

Em 2000, Mestre Dezinho fundou uma cooperativa, a CAMEDE – Cooperativa de Artesanato Mestre Dezinho, com o objetivo de criar melhores condições de comercialização para a arte santeira. Além disso, por meio da cooperativa foi possível criar oficinas para o repasse das técnicas para as novas gerações.

Em 2008, o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional incluiu a arte santeira do Piauí no Inventário Nacional de Referências Culturais como patrimônio imaterial do Piauí.

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